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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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O que espera quem recebe 27 anos de prisão: a Papuda dos anônimos ou a mansão dos poderosos?

Bolsonaro é condenado e expõe o contraste: pobres em celas superlotadas, enquanto poderosos fazem de mansões prisões de luxo

O que espera quem recebe 27 anos de prisão: a Papuda dos anônimos ou a mansão dos poderosos? (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

Onde Jair Bolsonaro deve iniciar o cumprimento da pena de 27 anos e três meses fixada pelo STF em 11 de setembro de 2025? Em cela da Polícia Federal, em dependência militar, na Papuda ou no conforto vigiado da própria casa?

A dúvida, repetida à exaustão, não é apenas logística: ela revela o abismo entre um sistema penitenciário que superlota celas e um país que, para certos nomes, sempre encontra uma chave extra para abrir a porta da sala.

Hoje, o Brasil convive com algo em torno de 900 mil pessoas privadas de liberdade. A imensa maioria está em unidades estaduais, comprimida em taxa média de ocupação superior a 130%, numa realidade de déficit estrutural superior a 170 mil vagas.

As condições dos presídios são dramáticas: falta de higiene, assistência médica escassa, superlotação e violência endêmica. Relatórios mostram que um terço das unidades foi classificado como ruim ou péssimo. As mortes violentas dentro das prisões são quatro vezes maiores que na sociedade.

Há cinco presídios federais de segurança máxima — Brasília, Catanduvas, Campo Grande, Mossoró e Porto Velho — reservados a casos excepcionais. Todo o restante pesa sobre uma malha estadual com cerca de 1,5 mil estabelecimentos, incluindo grandes complexos e pequenas cadeias.

Na geografia simbólica do cárcere, Tremembé, no interior paulista, tornou-se vitrine. Ali se custodiam condenados de grande repercussão, como Suzane von Richthofen, Alexandre Nardoni, Elize Matsunaga, Roger Abdelmassih. Por isso o apelido: “presídio dos famosos”. Um rótulo que cola.

Se a lei prevê domiciliar por idade, saúde, maternidade ou ausência de vaga adequada, a prática cobra senha de acesso: bons advogados, laudos céleres, capacidade de acionar o Judiciário. Assim, casos de grande visibilidade alcançam a casa mais rápido.

Foi assim com Fernando Collor, solto sete dias após ingressar na prisão por comorbidades. E aí tem um vale-tudo: participa de comícios, viaja na garupa de moto, mas, quando tem que cumprir pena, afirma ser bipolar, ter mal de Parkinson e outra penca de doenças. Foi assim com Sérgio Cabral, migrado ao regime domiciliar por decisão do Supremo após seis anos de cárcere. Com Eduardo Cunha, a pandemia abriu a porta. Todos eles parecem mafiosos que saltam da tela do cinema para a vida real, mas, quando precisam cumprir suas penas, adotam discurso de dar dó.

E Lula? Cumpriu 580 dias na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Recusou a domiciliar — “não sou pombo para usar tornozeleira”, disse ele uma vez — e saiu por decisão judicial que derrubou sua prisão. Depois, o STF anulou suas condenações por incompetência e parcialidade de Sergio Moro. A Justiça falhou vergonhosamente com Lula.

O ponto é que, entre exceções e revisões, a mensagem pública permanece turva. Quando a engrenagem aperta, os mais visíveis encontram respiro fora das grades. Já os anônimos, mesmo com as mesmas doenças e idades, ficam na fila. A seletividade dos benefícios para os condenados mostra uma justiça que há muito aposentou a venda que lhe cobre os olhos: ela conhece o CPF de cada um, a conta bancária de cada um, o espaço midiático ocupado por cada um. É ultrajante essa situação.

É nesse cenário que se decide o destino imediato de Jair Bolsonaro. Condenado por liderar a trama golpista, o ex-presidente já vinha em prisão domiciliar. Agora, sociedade e Justiça debatem: será cela comum ou será sala de estar? O grau de periculosidade do ex-presidente, seu histórico de não respeitar medidas cautelares, sua tendência a espalhar notícias falsas e promover discursos de ódio, sua misoginia e sistemático ataque às instituições do Estado de Direito, a meu ver, não recomendam que cumpra a pena em sua sala de estar.

Mas, então, deveria cumprir onde? Numa sala especial na Polícia Federal ou na Papuda. Qualquer decisão que não considere a escolha de um desses dois endereços será um escárnio, além de um cumprimento de pena sabidamente ineficiente, ineficaz, inútil, antipedagógico e altamente injusto para os condenados que não possuem um sobrenome vistoso, uma conta bancária polpuda ou legião de fãs ideológicos. Uma última opção é trancafiá-lo em apartamento de Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário. Assim fica sanada a preocupação do condenado de vir a morrer por falta de atendimento hospitalar tempestivo.

Não se discute apenas segurança institucional. Discute-se igualdade da lei. Se a escolha recair no endereço residencial, a percepção pública será clara: a prisão domiciliar, no Brasil real, parece privilégio reservado a quem ocupa o topo.

A contraprova está nas estatísticas ocultas do cotidiano. Milhares de mulheres pobres alcançam a domiciliar por maternidade graças a decisões do STF. Mas idosos e enfermos anônimos aguardam meses por perícias, enquanto defensores públicos sobrecarregados lutam contra a burocracia.

Nesse quadro, a domiciliar virou válvula de escape para a superlotação. Contudo, não corrige a causa do problema: encarceramento massivo por crimes sem violência, prisões provisórias duradouras e lentidão processual que multiplica celas cheias sem sentença definitiva.

O país precisa escolher que mensagem transmitir. Se a lei vale para todos, critérios devem ser universais e transparentes: protocolos médicos claros, fila única, prioridade a vulneráveis, monitoramento suficiente, revisão periódica. Só assim a exceção vira justiça.

Bolsonaro, qualquer que seja o endereço de sua custódia, será símbolo dessa encruzilhada. Ou reafirmaremos que a domiciliar é medida impessoal e justificada, ou seguiremos ensinando que a mesma lei opera diferente conforme o CEP e o sobrenome. É sempre útil repensar esse ponto.

A democracia mede-se aí: na porta que se abre, no cadeado que resiste e no olhar de quem segue do lado de fora, esperando que justiça não continue sinônimo de privilégio.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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