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Marcelo Zero

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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O Programa Nuclear Brasileiro não está imune a pressões

"A questão do desarmamento sempre foi usada como desculpa para se impor sanções ou intervenções militares"

(Foto: Charles Nisz)

A questão do desarmamento sempre foi usada como desculpa para se impor sanções ou intervenções militares a países vistos geopoliticamente como rivais dos interesses dos EUA e do Ocidente.

A invasão do Iraque foi justificada pela suposta presença de armas químicas em território iraquiano, uma mentira deslavada, comprovada pela OPAQ, cuja ação correta, baseada no direito internacional público, provocou a brutal defenestração do nosso Embaixador Bustani, um herói esquecido da soberania nacional e do multilateralismo.

Há muitos anos, usa-se a questão do programa nuclear iraniano, criado por um acordo entre os EUA e o antigo ditador pró-Ocidente Reza Pahlevi, para se impor sanções pesadas contra o Irã e, agora, se justificar uma guerra contra Teerã.

Em setembro de 2012, Netanyahu afirmou, ante a ONU, que o Irã teria armas nucleares já em meados de 2013. Emulou Colin Powell. É sempre assim, o Irã está sempre às vésperas de construir armas atômicas.

Mas, como argumentamos em recente artigo, essa questão do ´programa nuclear iraniano já foi “resolvida” pelo menos duas vezes, A primeira vez, pelo Brasil e pela Turquia, em 2010, e a segunda, em 2015, com a assinatura do Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), acordo que envolvia Irã, EUA, China, Rússia, França, Reino Unido, Alemanha e a União Europeia.

Como se sabe, os EUA, no primeiro governo Trump, abandonaram o acordo.

Mas essa não é a questão que gostaria de abordar aqui.

A questão que gostaria de debater é: o programa nuclear brasileiro não poderia ser submetido a pressões semelhantes?

Na realidade, o Brasil, já foi submetido a muitas pressões, por causa de seu programa nuclear, e poderria ser submetido de novo, talvez em breve.

Tudo isso, apesar dos seus inequívocos e abundantes compromissos pacifistas.

De fato, o Brasil tomou iniciativas muito importantes neste campo, a partir do final da década de 80. No plano interno, o Brasil desativou por completo o seu incipiente programa nuclear militar, inscreveu a proibição de atividades nucleares que não sejam para fins pacíficos em sua própria Constituição Federal (a, XXIII, art. 21) e transferiu o seu programa espacial do âmbito militar para uma agência civil (a Agência Espacial Brasileira-AEB, subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia).

No plano internacional, o Brasil celebrou e ratificou uma série de acordos e tratados que assinalam, de maneira inequívoca, o nosso sério compromisso com o desarmamento.

Entre tais acordos e tratados, podemos destacar o Acordo Quadripartite firmado com a Argentina, a ABACC e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o Tratado de Tlatelolco, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), a Convenção para a Proibição de Armas Químicas e a Convenção de Ottawa sobre Minas Terrestres.

Pelo mencionado Acordo Quadripartite, firmado em 13 de dezembro de 1991, o Brasil e a Argentina passaram a submeter-se às inspeções ordinárias e abrangentes da AIEA. Tais inspeções começaram a ser realizadas em 1994.

As inspeções ordinárias e abrangentes da AIEA são realizadas sobre material e plantas declaradas pelo país a ser inspecionado, com base em entendimento mútuo.

Essa submissão do Brasil às inspeções da AIEA foi depois reforçada com a adesão do Brasil ao TNP, apesar de o nosso país considerá-lo um acordo assimétrico, que cria, na prática, duas classes de países: aqueles que podem ter armas nucleares e aqueles que não podem.

Diga-se passagem, o Brasil aderiu ao TNP com uma cláusula condicional que foi aposta, pela oposição ao governo FHC no Congresso, ao Projeto de Decreto Legislativo que aprovou o texto daquele tratado. De autoria do então Deputado Haroldo Lima, tal cláusula dispõe que a adesão do Brasil ao Tratado estaria vinculada ao entendimento de que, nos termos do seu artigo VI, seriam tomadas medidas efetivas visando à cessação, em data próxima, da corrida armamentista nuclear, com a completa eliminação de todas as armas atômicas.

Entretanto, mesmo após a adesão do Brasil ao TNP e das inspeções sistemáticas que se seguiram, no governo Bush Filho o Brasil passou a sofrer muitas pressões para abrir suas instalações de centrífugas, situadas em Resende/RJ, as quais enriquecem urânio.

No que tange especificamente às centrífugas, o governo brasileiro negociou com a AIEA um sistema de controle baseado em painéis, os quais indicavam, com precisão, a partir de sensores de raios gama, a quantidade e o nível de pureza do urânio ali produzido. Com esse sistema, não havia necessidade de se investigar as centrífugas. Portanto, a tecnologia nacional, única no mundo com tal grau de eficiência, ficava protegida.As negociações vinham caminhando bem até março de 2004, quando a AIEA, surpreendentemente, rejeitou o sistema de painéis e passou a demandar que o Brasil aderisse ao Protocolo Adicional dessa agência, criado em 1997.

Esse Protocolo Adicional, de natureza inteiramente voluntária, autoriza a AIEA a aplicar as chamadas “salvaguardas reforçadas”, que permitem a inspeção de qualquer instalação sem nenhum aviso prévio (apenas 2 horas de antecedência) e sem nenhuma negociação, mesmo em instalações não diretamente ligadas à área nuclear. São inspeções bastante intrusivas, que dão praticamente uma “carta branca” para os inspetores fazerem o que bem entendam no país, inclusive recolher qualquer material para análise.

O Brasil se recusou e se recusa a aderir a esse Protocolo Adicional por considerá-lo desnecessário, e possível fonte de vazamento de tecnologias sensíveis, de propriedade do Brasil.

Saliente-se que a própria Estratégia de Defesa Nacional, afirma, desde 2012, que o Brasil “não aderirá a novos compromissos até que os Estados com armas nucleares façam progressos significativos no cumprimento de suas obrigações de desarmamento, nos termos do Artigo VI do TNP.” Ou seja, nossos militares se utilizam da cláusula interpretativa aposta pela oposição de esquerda no Parlamento para justificar, em parte, a não adesão ao Protocolo Adicional da AIEA. Ironias da História.

Embora a AIEA diga que protege as informações tecnológicas em suas inspeções, sabe-se que ela forneceu informações confidenciais sobre programas nucleares a governos interessados. Apesar de ser agência especializada das Nações Unidas, sabe-se também que a AIEA é muito permeável aos interesses estratégicos norte-americanos.

E quais são os interesses estratégicos dos EUA neste caso? Os EUA querem basicamente três coisas. Em primeiro lugar, ter acesso às centrífugas para estudá-las, copiar o que tiver de ser copiado. Em segundo lugar, pressionar o Brasil para acabar com o programa do submarino nuclear brasileiro, de interesse estratégico para as Forças Armadas, em especial a Marinha. Em terceiro, impedir que o Brasil desenvolva tecnologia que lhe permita fabricar seu próprio combustível nuclear em escala suficiente para abastecer suas usinas.

Atualmente, apesar de já conseguir enriquecer urânio em pequena escala, o Brasil ainda precisa importar muito urânio enriquecido para manter seu programa nuclear. No ano passado, o Brasil necessitou importar 26 toneladas de urânio enriquecido a 4% da Rússia, mesmo tendo a sexta maior reserva natural de urânio no mundo.

É a mesma coisa que importar gasolina e diesel tendo petróleo em abundância. Observe-se que o Brasil quer completar Angra 2 e construir Angra 3. Saliente-se que a própria Agência Brasileiro-Argentina de Controle e Contabilidade de Material Nuclear (ABACC) já tinha aceitado, na época, como perfeitamente adequado o sistema de controle por painéis.

Mas a pressão deve continuar.

Parece-nos que, nas atuais circunstâncias geopolíticas, o governo Trump poderá renovar pressões sobre o programa nuclear brasileiro. E poderia fazê-lo utilizando-se de terceiros.

Mais especificamente, a Argentina.

O ponto fulcral do controle do material nuclear na Argentina e o Brasil é o mencionado Acordo Quadripartite firmado com a Argentina, a ABACC e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o qual funciona muito bem. Ambos os países se controlam.

Porém, a Argentina, nas atuais circunstâncias, pode varrer o Acordo Quadripartite e aderir ao Protocolo Adicional da AIEA, que se tenta impor.

Já houve precedentes. O governo Macri – que em 2016 iniciou mais um ciclo de desindustrialização, financeirização, endividamento, tentou levar a Argentina a assinar o PA, enquanto deixava a ABACC morrer de inanição.

Milei, como se sabe, próximo ideologicamente a Macri, tem uma reação de absoluta submissão geopolítica a Trump, assim como também tem uma relação semelhante com Netanyahu. Ademais, detesta o Brasil de Lula, a integração regional e o Mercosul.

Nesse sentido, o governo Milei poderia aderir ao Protocolo Adicional da AIEA. Caso isso aconteça, o Brasil, nos termos do Acordo Quadripartite, pode ser muito pressionado para aderir também ao Protocolo Adicional, tendo-se que se submeter a toda uma série de inspeções bem intrusivas, que devassem o projeto das centrífugas brasileiras.

Caso não o faça, poderia acabar sendo submetido a sanções várias. O Brasil, tal como o Irã, talvez seria pressionado a acabar, ou a rever de forma radical, seu programa de centrífugas e de enriquecimento de urânio.

Esse não é um cenário impossível ou improvável.

Tanto Trump, quanto Marco Rubio, quanto Elon Musk e toda a caterva do Maga detestam o Brasil de Lula e farão de tudo para diminuir seu protagonismo regional e mundial. Eduardo Bolsonaro, reconheça-se, está se esforçando bastante para que tal aconteça.

O Brasil é a única liderança da América do Sul que tem melhores condições de conduzir um processo de resistência a Trump e de promoção do multilateralismo no subcontinente. Também é um país que faz parte do BRICS e que está alinhado com os interesses do Sul Global, o que incomoda bastante Trump e o MAGA.

Recentemente, Marco Rubio, intrometendo-se nas relações bilaterais Brasil/Paraguai, afirmou que este último país deveria parar de vender sua energia excedente de Itaipu para o Brasil e fornecê-la às bigtechs americanas.

A imprensa brasileira, infelizmente, vê com bons olhos, até com entusiasmo, as agressões de Israel/EUA contra o Irã. Apostam numa fictícia mudança do regime “demoníaco”, dos aiatolás. Creio até que aplaudiriam o prometido assassinato do aiatolá Khamenei, que incendiaria o mundo xiita.

De qualquer forma, são parvos o suficiente para acreditar que o Brasil, com as diferenças geopolíticas e geográficas que o separam do Irã, não seria capaz de ser submetido a tratamento semelhante e humilhante.

Melhor pensar duas vezes. Com ambos os neurônios.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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