O lumpesinato de MC Poze, o privilégio estrutural de Léo Lins e o contrato social de Hobbes
O funkeiro e o humorista foram alçados à condição de representantes da realidade e da natureza humana de suas “massas”, respectivamente
Qual o limite da arte e do humor? O que deve ser considerado arte ou humor, e quem é o responsável por fazer essa avaliação? Diante dessas duas questões, o absolutismo estatal defendido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes torna-se inevitavelmente tentador. Porém, é importante refletirmos mais atentamente sobre a sua ideia de Estado absoluto que, apesar da premissa lógica que pavimenta o seu raciocínio, as conclusões e resoluções oriundas dela podem ser problemáticas. Devemos concordar com ele que “o homem é o lobo do homem”, como ele assim propôs, e que a sua natureza existencial é predadora da própria espécie. O que implicaria na necessidade de uma intervenção do Estado para estabelecer a ordem, a paz e a segurança, mediando os conflitos de interesses existentes entre os cidadãos.
É preciso pontuar que a sociedade do século XVII, quando Hobbes formulou tal pensamento, vivia o auge do absolutismo monárquico que concentrava todo o poder nas mãos de um único governante, que personificava a figura do Estado e exercia um poder inquestionável sobre tudo e todos. Em “Leviatã”, Thomas Hobbes coloca o Estado na condição evocada de um ser mitológico bíblico, cuja função no contrato social proposto por ele era de ameaçar com punições severas todos aqueles que desobedecessem às regras do contrato, colocando em risco a integridade dos demais membros do corpo social e a harmonia entre eles. Em 2025, quatro séculos e muitas polêmicas depois, nos deparamos com a necessidade de um novo contrato social em face das novas guerras de interesses estabelecidas dentro da sociedade atual. Ou não seriam tão novas assim?
Quando um funkeiro é preso por suposta associação a uma facção criminosa, e sob a acusação de fazer apologia ao crime organizado nas letras de suas canções, e consegue reunir uma multidão de pessoas pedindo a sua soltura nas redes sociais e na porta do presídio para onde ele foi levado, sob a defesa de que ele está sendo criminalizado por cantar a realidade do meio onde ele, e muitas das pessoas que o estão defendendo nasceram, temos um contrato social sendo estabelecido. MC Poze conseguiu mobilizar em sua defesa um grande número de pessoas que se sentiram “representadas” por ele. Não obrigatoriamente por terem a sua mesma origem social, mas também por se sentirem censuradas, marginalizadas, discriminadas e excluídas, seja em função da cor da pele, do gênero, da condição econômica ou sobre o que consideram realidade a ser expressa através da arte. Uma espécie de lumpesinato que deu a MC Poze o status de governante ou mártir dessa massa, conferindo a ele a condição de representá-la em seu protesto.
Do mesmo modo, o humorista Léo Lins, que foi condenado a 8 anos de prisão por cometer crimes sob a máscara do humor, mobilizou outra multidão em defesa do seu direito de fazer as piadas que bem entender, ainda que elas sejam criminosas. Também temos um contrato social sendo estabelecido neste caso, só que em condições sociais opostas ao de MC Poze. A “massa” que apoia Léo Lins é majoritariamente branca, rica e privilegiada, e nunca foi colocada à margem da sociedade pelo poder do preconceito. Marx definiu o lumpesinato como sendo grupos de pessoas que são considerados marginalizados e que são usados como instrumentos de poder por parte de outros grupos. A chamada “massa de manobra” que, sem consciência de classe, se rege politicamente por suas angústias e carências, ou é regida pelo oportunismo de outros grupos, políticos e sociais, que fala em seu nome, mas não lhe dá protagonismo e nem resolve de fato os seus problemas.
A elite burguesa, definida pelo próprio Marx como dona dos meios de produção e como quem submete o proletariado ao seu controle, está ao lado de Léo Lins na defesa do seu direito de oprimir minorias. Seja com sua ideologia sócio política excludente, seja com piadas que mantêm essa minoria oprimida existencialmente. Em ambos os casos, essa burguesia elege representantes para defender suas ideias, direitos e privilégios. Em se tratando de Brasil, poderia citar Bolsonaro e Léo Lins, respectivamente, como defensores da política e do bom humor burguês no país que, como mártires desta massa branca e rica, se sacrificaram em nome da defesa da liberdade de expressão. Se contar piada virou crime, e eu sou humorista, logo, serei preso. Se a liberdade de expressão está sendo censurada, e eu exerço a minha liberdade de expressão, logo, eu serei censurado. Um silogismo quase válido quando nos atentamos para um detalhe que não parte de nenhuma premissa, mas que nos leva a uma conclusão. A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ela é fundamental, mas nos cobra limites.
Chegamos a um conflito de classes, não exatamente pelo motivo que Marx desejava, mas que também não foge da luta contra a opressão burguesa sobre o proletariado, além de abordar interseccionalidades por vezes ignoradas e classificadas como identitarismo. No contexto de MC Poze, a inevitável revolução do povo contra a burguesia idealizada por Marx, tem um quê de conscientização de classe meio inconsciente. Frequentemente associada a comportamentos criminosos, a massa do lumpemproletariado de MC Poze reage contra o sistema que oprime a sua cultura, tendo o racismo como fio condutor de sua reação e da forma abusiva como foi conduzida a prisão do MC. A ironia contida na situação é que MC Poze, mesmo sendo um jovem negro e de origem periférica, hoje é rico e está mais próximo economicamente da burguesia que o discrimina, do que da periferia que o apoia e consome sua arte. Se alguém lhe apresentasse Paulo Freire, ele entenderia que também está reproduzindo a lógica do opressor que acha que pode tudo por que tem dinheiro e poder.
Em resumo, funkeiros como MC Poze têm a oportunidade de promoverem mudanças sociais significativas em suas comunidades de origem, a partir do momento em que ascendem economicamente. Não o fazem porque não foram submetidos a uma educação libertadora, e acabaram alimentando o sonho de se tornarem opressores acreditando que os vitoriosos são aqueles que ostentam riqueza e arrogância sobre os demais. Afinal, era dessa forma que eles sempre foram tratados pela elite burguesa. Agora, imaginem se um cara desses adquirisse consciência de classe e fizesse uso dos recursos financeiros que hoje possui para criar projetos sociais voltados para a educação nas comunidades, ao invés de querer ser apenas mais um privilegiado em seu mundinho de futilidade e ostentação. O papo é longo e sério, mas talvez muitos ainda não estejam preparados para ele.
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