Israel é um problema brasileiro: romper é resistir
'O governo Lula avalia romper com Israel, mas o Brasil precisa estar pronto para o contra-ataque. Soberania custa caro. Submissão, muito mais'
Há momentos na história de uma nação em que o compromisso com a justiça cobra mais do que palavras: exige ruptura. Desde o início da ofensiva militar de Israel sobre Gaza em outubro de 2023, que já deixou dezenas de milhares de civis palestinos mortos, entre eles milhares de crianças, o mundo assiste ao desenrolar de uma tragédia com contornos genocidas. A Corte Internacional de Justiça já reconheceu indícios claros de genocídio e crimes de guerra cometidos pelo Estado de Israel. Diante disso, cresce no Brasil, como em vários países do Sul Global, uma pressão legítima e irreversível: romper relações diplomáticas e comerciais com um Estado que transformou a ocupação em máquina sistemática de extermínio.
A recente declaração de Celso Amorim, assessor especial da Presidência, confirma que o governo Lula estuda seriamente essa possibilidade. Não se trata de uma bravata ideológica, mas de uma inflexão coerente com a tradição diplomática brasileira: uma diplomacia baseada nos direitos humanos, no direito internacional e na autodeterminação dos povos. É também uma resposta ao clamor de movimentos sociais, entidades acadêmicas, coletivos judaicos progressistas e de milhares de cidadãos que se recusam a assistir passivamente ao massacre palestino.
No entanto, essa decisão — correta, necessária e moralmente inadiável — não será isenta de custos. O Brasil está profundamente entrelaçado, muitas vezes de forma invisível, a interesses estratégicos, tecnológicos, financeiros e militares israelenses. Empresas de origem israelense controlam sistemas de vigilância de fronteira, fornecem peças fundamentais para os caças da Força Aérea, operam softwares usados por bancos, mineradoras e até na segurança urbana. Nas sombras do aparato institucional, age um lobby sionista que influencia decisões políticas, editoriais e jurídicas no país.
Romper com Israel, portanto, significa muito mais do que suspender um embaixador ou cancelar um acordo comercial. Significa mexer numa rede de dependência silenciosa, porém profundamente enraizada. O gesto de soberania trará resposta — e essa resposta virá em forma de boicotes econômicos, chantagens diplomáticas, sabotagem política e guerra informacional. O Brasil, e em especial o governo Lula, precisarão estar preparados para isso.
Neste artigo, defendemos abertamente o rompimento das relações com Israel como imperativo histórico. Mas o fazemos com plena consciência de suas consequências. Não se trata de heroísmo retórico, e sim de realismo geopolítico. O apoio à Palestina não pode ser apenas simbólico — ele precisa ser estratégico. E, para isso, é preciso reconhecer os riscos, mapear os campos de ataque e preparar as defesas. Afinal, quem rompe com um poder colonial precisa saber onde pisa.
A teia israelense no Brasil
A presença de Israel no Brasil não se limita a embaixadas, adidos militares ou acordos bilaterais. O que se consolidou nas últimas duas décadas, sobretudo após a Lava Jato e o desmonte da Base Industrial de Defesa (BID), foi uma teia silenciosa de penetração tecnológica e dependência estrutural. Em nome da eficiência, da modernização e da segurança, o Estado brasileiro passou a terceirizar funções críticas — muitas vezes, sem transparência, sem soberania e sem debate público. E o principal beneficiado desse processo foi o complexo industrial-militar israelense.
No setor de defesa, a Elbit Systems, gigante israelense com atuação global, controla por meio da subsidiária AEL Sistemas parte fundamental dos sistemas de comando e controle das Forças Armadas brasileiras. É dela a tecnologia dos aviônicos do caça Gripen NG, dos radares integrados ao SISFRON (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) e dos sistemas remotos de armas dos blindados e navios da Marinha. A mesma Elbit comprou, após a Lava Jato, a Mectron — antes um dos principais ativos estratégicos da Odebrecht Defesa — e ampliou sua presença no setor de mísseis e comunicação militar. Sem essa estrutura, o Brasil não voa, não vê e não se protege em seus pontos mais sensíveis.
Na área de cibersegurança e vigilância, a penetração é igualmente profunda. Empresas como Cellebrite, Cognyte e CySource fornecem desde ferramentas forenses para a Polícia Federal até treinamento de guerra cibernética para o Exército Brasileiro. Firmas como SME SEC, CyCognito e CyberGate atuam junto a bancos, companhias aéreas, mineradoras, operadores logísticos e entidades governamentais, muitas vezes com softwares proprietários hospedados fora do país — o que implica acesso estrangeiro potencial a dados sensíveis de interesse nacional.
No agronegócio, Israel opera como fornecedora de tecnologias essenciais de irrigação, genética vegetal e agricultura de precisão. A Netafim, por exemplo, é amplamente utilizada em regiões do semiárido nordestino. A presença israelense também é relevante em projetos de dessalinização de água (como os realizados no Ceará) e em sistemas de reuso industrial. Essa dependência hídrica e alimentar, num país de proporções continentais, é geoestratégica.
A penetração se estende ainda ao setor de startups e inovação, com forte presença nos polos tecnológicos de São Paulo, Porto Digital (Recife) e Florianópolis. Fundos como OurCrowd e Team8 aportam capital e inteligência em empresas brasileiras de alto valor agregado. Além disso, há forte cooperação no campo da educação e diplomacia científica, com programas de intercâmbio e cooperação técnica que se dão por meio da Mashav, a agência oficial de cooperação de Israel — muitas vezes com foco em áreas de aplicação dual (civil e militar).
Trata-se, portanto, de uma rede de controle sofisticada, fragmentada e invisível, que permite a Israel exercer influência direta e indireta sobre áreas vitais do Estado brasileiro. Mais do que simples relações comerciais, o que se consolidou foi um vínculo de dependência assimétrica, no qual o Brasil transfere soberania tecnológica em troca de promessas de modernização.
Romper com Israel, nesse cenário, significa cortar canais de influência que hoje estão enraizados no coração do sistema estatal, financeiro, informacional e produtivo brasileiro. Por isso, é preciso entender que esse rompimento não se dará sem retaliação.
O contra-ataque: o que viria após o rompimento
Caso o governo Lula decida formalmente romper relações com Israel, o gesto político será imediatamente lido — por Israel e por seus aliados estratégicos — como um ataque frontal à arquitetura global do sionismo político e à aliança transnacional que o sustenta. Esse gesto não ficará sem resposta. Ao contrário, pode deflagrar uma reação articulada em múltiplas frentes: tecnológica, econômica, diplomática, midiática e informacional.
A primeira retaliação previsível viria no campo militar e tecnológico. Israel é fornecedor exclusivo de sistemas, peças e softwares que operam plataformas de uso contínuo pelas Forças Armadas brasileiras. Caso o país rompa relações, é possível — e provável — que haja suspensão unilateral de suporte técnico, revogação de licenças, atraso ou interrupção de atualizações críticas, e bloqueio de reposição de peças. Drones como o Heron (e seu derivado nacional, o VANT Caçador), sistemas de link de dados do Gripen, sensores do SISFRON, torres remotas de armas dos blindados — todos esses podem ser paralisados ou sabotados pela simples decisão de Israel de cortar o canal logístico. Trata-se de uma vulnerabilidade estratégica construída ao longo de anos de dependência consentida.
No campo da cibersegurança, os riscos são ainda mais invisíveis — e possivelmente devastadores. Empresas israelenses atuam diretamente em sistemas críticos brasileiros, inclusive na área bancária, energética e de infraestrutura. Em caso de rompimento, há risco real de operações cibernéticas ofensivas disfarçadas, danos controlados em sistemas, instabilidade forjada em operações críticas e manipulação de dados sensíveis — com rastreabilidade quase nula. O Brasil, que ainda não consolidou uma doutrina soberana de defesa cibernética, poderia sofrer ataques híbridos sem ter como responder em tempo ou com simetria.
Na arena diplomática e comercial, Israel não estará sozinho. Com o rompimento, é provável que os Estados Unidos, o Reino Unido e partes da União Europeia reajam de forma coordenada — ainda que informal. O lobby sionista internacional é articulado, influente e possui capilaridade nos centros decisórios globais. O Brasil pode ser punido em votações multilaterais, boicotado em candidaturas internacionais, pressionado financeiramente em organismos como FMI, OCDE e BID, e ainda sofrer represálias de empresas transnacionais alinhadas à agenda israelense.
Internamente, o impacto também será profundo. A extrema-direita, os setores evangélicos fundamentalistas e a mídia corporativa intensificarão uma campanha de desestabilização. A narrativa será imediata: o Brasil está “do lado do terrorismo”, “rompe com os valores ocidentais”, “é antissemitista”, “prejudica a economia” — tudo embalado em linguagem emocional, religiosa e anticomunista. Essa retórica será reforçada por milícias digitais articuladas globalmente, com campanhas de desinformação em larga escala, guerra semiótica, lawfare e tentativas de impeachment simbólico da política externa brasileira.
Há ainda o risco de retaliações judiciais, alimentadas por operadores do direito, think tanks e agentes infiltrados em estruturas do Estado. A história recente da América Latina — especialmente a brasileira pós-2005 — mostra como a guerra híbrida pode ser acionada com rapidez para derrubar governos que ousam romper com os interesses do capital internacional e suas redes de poder simbólico e militar.
Ou seja: o contra-ataque será real, rápido e coordenado. Não será apenas de Israel, mas do sistema que o sustenta. Romper com Tel Aviv será, na prática, romper com um nó de controle imperial dentro da máquina de Estado brasileira.
Mas ainda assim — e talvez por isso mesmo — esse é o único caminho digno para uma nação soberana.
O preço da soberania — e por que ainda vale a pena pagar
Diante do cenário de retaliações previsíveis, sabotagens silenciosas e pressões diplomáticas que o rompimento com Israel certamente provocará, pode parecer mais racional recuar. Pode parecer, inclusive, que o custo da soberania é alto demais. Mas é justamente aí que reside o ponto central: soberania sempre teve custo. E historicamente, os países que se recusaram a pagar esse preço acabaram pagando algo pior — submissão.
O Brasil chegou a este ponto não apenas pelo genocídio em Gaza, mas por uma acumulação histórica de concessões. O desmonte da Base Industrial de Defesa, o sucateamento da pesquisa nacional, a dependência tecnológica vendida como modernização, a terceirização da segurança e dos dados públicos, a entrega dos cérebros das universidades ao capital estrangeiro: tudo isso abriu as portas para que o país fosse se tornando refém de tecnologias e interesses que não controla, nem sequer compreende em sua totalidade.
Romper com Israel é, portanto, muito mais do que uma condenação ao massacre palestino — é um gesto de reorganização geoestratégica. É uma oportunidade de rever contratos, de auditar tecnologias, de investir em ciência soberana, de recuperar capacidades nacionais abandonadas, de diversificar alianças e, sobretudo, de reconstruir a confiança do Sul Global em um Brasil altivo e ativo, como já foi no passado recente.
Sim, haverá impacto. Sim, haverá sabotagem. Mas a alternativa é seguir alimentando uma relação em que o Brasil depende da inteligência militar de um Estado acusado de crimes contra a humanidade; em que dados de fronteira, bancos, comunicações e infraestruturas críticas estão nas mãos de fornecedores vinculados a uma potência estrangeira; e em que qualquer crítica legítima à política externa israelense pode significar chantagem econômica, manipulação informacional ou desestabilização política interna.
Esse é o verdadeiro custo da neutralidade covarde. E não há neutralidade possível diante do genocídio.
Se o Brasil quiser, de fato, retomar sua posição de liderança global — uma liderança baseada na justiça, na solidariedade e na autodeterminação — precisará enfrentar o campo minado da soberania com coragem, estratégia e inteligência. O corte de relações com Israel será apenas o primeiro passo. Os próximos dependerão de capacidade de articulação internacional, investimentos públicos em ciência e defesa, alianças com países que também resistem ao novo colonialismo digital e militar — e, principalmente, de um projeto de nação que não se ajoelha diante da chantagem.
Soberania custa caro. Mas a submissão cobra a alma.
Conclusão
A história não é feita apenas por aqueles que vencem guerras com tanques e sanções, mas também por aqueles que têm coragem de dizer “não” quando todos esperam silêncio. O Brasil está diante de uma encruzilhada histórica: manter-se cúmplice — ainda que por omissão — de um regime que executa em tempo real um processo de extermínio colonial, ou assumir, com lucidez e firmeza, sua posição ao lado da humanidade.
Romper com Israel não é um ato de isolamento. É um ato de alinhamento com a vida. É reafirmar a centralidade dos direitos humanos, do direito internacional, da autodeterminação dos povos e da própria soberania brasileira. É também, e sobretudo, desarmar a engrenagem de submissão silenciosa que se instalou no Brasil por meio de contratos tecnológicos assimétricos, dependência militar disfarçada de cooperação e penetração ideológica promovida por lobbies transnacionais.
O governo Lula, que historicamente simboliza a resistência democrática e a reconstrução do Estado brasileiro após o vendaval neoliberal e autoritário, precisa ter consciência de que o gesto de romper com Israel será interpretado como desafio por um sistema que não perdoa insubmissões. Haverá reação. Haverá tentativas de desestabilização. Mas há também um país inteiro que anseia por dignidade, coerência e coragem.
Nenhum governo progressista sobrevive se não compreender que a disputa por soberania não é apenas técnica ou econômica — ela é simbólica, comunicacional e estrutural. E, diante do cenário atual, a escolha é simples, ainda que dura: ou o Brasil resgata sua condição de liderança ética e independente no mundo, ou continuará sendo apenas uma engrenagem administrada à distância por interesses que não lhe pertencem.
Romper com Israel é um ato de memória e de futuro. É o resgate de uma diplomacia que ousou ser altiva. É o reconhecimento de que o povo palestino, ao resistir, está defendendo também o direito de todas as nações de não serem colônias do século XXI. E é, sobretudo, a afirmação de que o Brasil não está à venda, nem calado diante do genocídio.
Quem toma partido da vida precisa saber que será atacado. Mas só quem toma partido é capaz de mudar a história.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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