Espada ambígua
Até que ponto o general Tomás Paiva está disposto a cumprir o que disse e direcionar o seu foco de intercâmbio para países como Rússia e China?
No dia 21 passado, o comandante do Exército, Tomás Ribeiro Paiva, leu a Ordem do Dia, como é praxe de todos os anos na cerimônia que comemora o Dia do Soldado. Em sua mensagem, destacou também, como é costume, o patrono da corporação, Duque de Caxias, lembrando trechos de discursos do marechal como “minha espada não tem partido.”
Aí a notícia carece de exatidão. Ou de questionamento. A julgar pelas últimas promoções de nove oficiais a generais de quatro estrelas e, observando o seu comportamento desde que assumiu o cargo, nos parece que aos olhos externos e próximos ao governo, Tomás Paiva tenta parecer aquele que proferiu um discurso inflamado em favor do respeito às eleições, chamando a atenção do presidente Lula, a ponto de convidá-lo para o comando da Força. Porém, seus movimentos são cheios de ambiguidade.
Enquanto em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, no dia 07/06/2024, à jornalista Mônica Gugliano, procurou passar uma imagem quase de um progressista, emitindo conceitos que ecoaram positivamente no Planalto, intramuros segue tomando providências e se fazendo de morto em temas que poderiam estremecer a relação. Por exemplo, ao Estadão defendeu que o Brasil amplie parcerias estratégicas com a China e com outros países do Brics, grupo que reúne também nações como Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes, Etiópia e Egito.
No entanto, se calou quando matérias repercutindo o posicionamento de oficiais que de forma dura e direta declararam alto e bom som que, mesmo diante das perseguições de Donald Trump, o presidente estadunidense, contra o Brasil, não topariam comprar equipamentos e armamentos chineses ou russos. Permaneceriam interagindo com o Comando Sul dos EUA e promovendo os exercícios conjuntos, dos quais acabaram dispensados de maneira constrangedora pelos oficiais daquele país, recentemente.
Na escolha dos generais que foram promovidos mês passado – embora o voto para a promoção não seja apenas seu, e sim de um colegiado de mais 15 colegas do Alto Comando -, saíram de lá com uma estrela a mais nas dragonas, nomes como o do general Marcelo Zucco, que passou de general de brigada a general de divisão, um dos postos mais altos da carreira militar. A ascensão ocorre após sua passagem pelo comando da 1ª Brigada de Infantaria de Selva, em Boa Vista (RR), durante o agravamento da crise humanitária e ambiental na Terra Indígena Yanomami. O que se diz é que Zucco fez corpo mole nas ações que poderiam mitigar o sofrimento dos indígenas.
Marcelo é irmão do deputado federal Luciano Zucco (PL-RS), presente à cerimônia de promoção, evento realizado em Brasília, no início de agosto, prestigiado por nomes da cúpula militar e política.
De acordo com uma reportagem publicada pelo portal “De Olho nos Ruralistas”, que relembra a atuação do general Zucco no Comando em Roraima e em audiência com parlamentares realizada em 21 de março de 2022, o então comandante afirmou que “tem muito trabalhador envolvido com garimpo” e que a Brigada “não estava fazendo grandes operações” naquele período. Ao se pronunciar desse modo, Zucco parece ter preferido opinar, a agir.
Sua declaração reverberou e sua política de enfrentamento ao garimpo foi tida oficialmente como “de baixa intensidade”, e para as comunidades indígenas a ausência de operações de maior porte coincidiu com o avanço da mineração ilegal, da fome e do surto de doenças associadas à atividade, agravando a necessidade de emergência sanitária na região.
Não bastasse a “inoperância”, identificada também no combate ao desmatamento, o parentesco do general com um radical da ultradireita, Luciano Zucco, um dos maiores defensores de Bolsonaro e sua família, é comentado à boca miúda.
Às vésperas do julgamento (previsto para acontecer no próximo dia 2), dos oito oficiais apontados como participantes ativos do “grupo crucial”, organizados para uma tentativa de golpe no país, o general Tomás Paiva não se manifesta, tendo dito até aqui, que esperaria o desfecho do processo, quando se sabe que ao comando é permitido levar ao Conselho de Justificação os militares que ferem a ética da carreira. E ao serem arrolados, eles já não expuseram as Forças Armadas?
Vejamos o que diz a orientação para os comandos, sobre levar um militar a julgamento no Conselho:
“Este é um procedimento administrativo-disciplinar específico das Forças Armadas do Brasil, mais precisamente aplicável aos oficiais militares. O conselho é convocado com a finalidade de avaliar a conduta de um oficial que, por suas ações, possa ter infringido a ética, a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe”.
A base legal para a formação e o funcionamento do Conselho de Justificação encontra-se principalmente na Lei nº 5.836, de 1972. Esse mecanismo é acionado quando há suspeitas ou acusações de que um oficial cometeu “atos incompatíveis com a função militar, seja por meio de crimes militares ou civis, ou por comportamentos que desabonem a sua conduta”. Entenderam? Basta haver suspeita. Mas Tomás Paiva preferiu ser “prudente” ...
General vai atuar na posição que foi de Estevam Theophilo
É bom relembrar, por exemplo, que entre os já levados à condição de réu, está o general Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres e réu no núcleo 3, do relatório da PGR. Tão logo surgiram as denúncias que o apontavam como um dos envolvidos na trama golpista, foi acolhido na chefia de gabinete do Alto Comando do Exército, até a reforma, num nítido “passar de pano” até o dia 1ºde dezembro de 2023, quando foi para a reserva.
Dizem que o gesto se deu em consideração à família, tradicional nas fileiras, com várias gerações de generais, com exceção do tio, Cesar Cals. Esse chegou a coronel, mas abraçou a política antes de atingir o último posto. Foi ministro das Minas e Energia, da ditadura, no governo do ditador João Figueiredo.
A mais recente movimentação no Alto Comando sob a direção de Tomás Paiva foi a promoção do general Alcides Valeriano, que coordenou exercícios militares no SOUTHCOM em 2019 (o Comando Sul – EUA). Ele acaba de assumir o topo da Força Terrestre brasileira, com poderes sobre doutrina e treinamentos. A promoção reacende debate sobre soberania, base legal de cooperação e impactos doutrinários da integração com os EUA. A posição que agora ocupa é a mesma em que se encontrava Estevam Cals Theophilo, quando foi cooptado por Bolsonaro - pelo que está nos autos -, para agir no golpe, em lugar do general Marco Freire Gomes, que desembarcou da conspiração, antes do 8 de janeiro.
Em 2019, ainda general de brigada, Faria Júnior foi nomeado subcomandante de interoperabilidade no SOUTHCOM, uma função inédita para um brasileiro. Ele passou a coordenar exercícios conjuntos, protocolos operacionais e comunicações entre militares norte-americanos e de países da América Latina. Foi um marco na história das relações militares bilaterais, mas também motivo de críticas: setores acadêmicos e jurídicos alertaram para os riscos de subordinação hierárquica e falta de clareza sobre a base legal que permitiu tal designação.
Justo numa época em que os Estados Unidos intensificaram a pressão sobre o regime de Nicolás Maduro, da Venezuela e o cenário geopolítico era de forte tensão regional. Para se ter uma ideia, houve operações de dissuasão no Caribe e o que os EUA buscavam era uma articulação internacional para isolar Caracas. A presença de um oficial brasileiro no Comando Sul nesse contexto levantou dúvidas sobre a real autonomia do Brasil em um eventual conflito regional.
A função do Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), sediado em Miami é a coordenação de operações militares no Caribe, América Central e América do Sul. O órgão foi criado em 1963, atua em exercícios multinacionais como PANAMAX e UNITAS, além de missões de combate ao narcotráfico, assistência humanitária e segurança regional. O Brasil já participou de diversas iniciativas sob a coordenação do SOUTHCOM, como exercícios militares conjuntos na Amazônia, reforçando a cooperação militar entre os dois países.
Essa proximidade, em caso de conflito direto, de acordo com estudiosos do tema, deixaria o Brasil exposto a bloqueios financeiros e restrições logísticas. Embora grande parte dos oficiais brasileiros, especialmente das tropas de elite, passem por cursos nos Estados Unidos, a existência de um posto de comando no SOUTHCOM não é apenas simbólica, mas parte de um padrão de alinhamento que inclui treinamentos, intercâmbios e padronização doutrinária que, do ponto de vista histórico, coloca o país em um processo de subordinação.
A promoção recente de Alcides Valeriano de Faria Júnior ao posto de general de Exército, a mais alta patente da Força Terrestre, vai muito além de prestígio militar. Pode ter sido uma escolha estratégica.
Sua indicação para o SOUTHCOM foi articulada no governo Michel Temer e confirmada nos primeiros meses de Jair Bolsonaro. Agora, quando o país atravessa uma quadra delicada na relação de 201 anos com os Estados Unidos, dar poderes de comando a um general que transita entre esses dois mundos militares, com relações e informações estratégicas de ambos os países, suscita discussões do tipo: até que ponto o general Tomás Paiva está disposto a cumprir o que disse ao Estadão em junho de 2024, e direcionar o seu foco de intercâmbio para países como Rússia e China?
A julgar pelas movimentações em seu tabuleiro de peças, é difícil vislumbrar mudanças nesse sentido. Ainda que o Comando Sul tenha recuado nos exercícios conjuntos, sem dar muitas explicações. Há silêncio na caserna.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.