Efeitos internos do tarifaço de Donald Trump podem ser eliminados com crescimento econômico
Medidas ousadas de investimento e isenção tributária podem transformar o impacto do tarifaço de Trump em oportunidade para acelerar o crescimento econômico
Imagine alguém que perca sua casa numa dessas enchentes destrutivas na era dos desastres climáticos extremos: o que pode fazer? Não tem dinheiro à vista para reconstruí-la. Não tem seguro para resgatá-la. Não tem poupança guardada para situações de emergência. Enfim, não tem nada, a não ser os escombros da casa!
Contudo, essa pessoa tem uma coisa extremamente importante: crédito. Seu cadastro é limpo e está em situação de ser apresentado ao banco, junto com uma prova de que pode financiar a casa nova tomando de empréstimo o dinheiro necessário, mediante demonstração de que tem capacidade de pagamento com seu emprego certo e sua capacidade de trabalho.
Assim funciona o sistema capitalista. E funciona tão bem individualmente como funciona para o Estado. Diante de uma tragédia climática nas proporções da que aconteceu no Rio Grande do Sul, em maio de 2024, o governo federal só conseguiu resgatar o Estado porque recorreu ao crédito. Este implicou aumento do déficit público, contornando o chamado “arcabouço fiscal”.
O Executivo foi forçado a propô-lo ao Congresso por medida provisória e garantir sua aprovação legislativa em face de um desastre sem precedentes, a que assistiu o País inteiro. Seria impossível ficar impassível diante dele, sob o argumento de que o “arcabouço fiscal” teria que ser cumprido de qualquer forma, pois a população não toleraria essa inação governamental.
Vamos generalizar esses conceitos. O Brasil está diante de uma tragédia comercial, ou seja, o tarifaço imposto pelo Governo americano a uma parte significativa de suas empresas que exportam para os EUA. Diante disso, a prioridade é buscar mercados alternativos no exterior ou ampliar a demanda interna para absorver os produtos repelidos por eles em função do tarifaço. Mas as empresas exportadoras não podem encontrar mercados alternativos de um dia para o outro, nem aumentar sua demanda interna sem um impulso governamental nesse sentido.
Deve-se, pois, encontrar uma solução intermediária para dar tempo a que esses mercados sejam identificados e contratados, e a demanda interna ampliada. Como já propus em artigo anterior, entendo que o governo, como primeira opção, deve decretar a isenção para as empresas exportadoras para os EUA de todos os impostos federais (IPI, principalmente), negociando a isenção também dos estaduais (ICMS, principalmente). Paralelamente, deve injetar recursos na economia para garantir e mesmo aumentar a demanda interna, a fim de compensar o mercado perdido na América do Norte.
Nem todos os empresários estão parados. Alguns mercados alternativos para produtos brasileiros exportados para os EUA, inclusive os que estão sendo submetidos às escorchantes tarifas de 50%, como o café, já estão absorvendo nossas exportações. É o caso da China, que ampliou largamente seu mercado para o café brasileiro. Isso acontece também com a laranja, exportada para a Holanda. Contudo, ainda suportam as tarifas de 50% as exportações de aço e alumínio, duas das principais indústrias brasileiras. Isso tem que ser resolvido, embora com alguma dificuldade, porque se trata de insumos para a infraestrutura, para a qual não há demanda imediata no mundo, pois requer planejamento, projetos e, finalmente, construção civil.
Ao todo, as exportações brasileiras para os EUA alcançaram pouco mais de US$ 18 bilhões (cerca de R$ 95 bilhões) no ano passado, ou seja, um montante pouco significativo em comparação com o PIB de mais de R$ 11,7 trilhões. Não é por isso, porém, que o governo deixará a seu destino mais de 600 pequenas e médias empresas que exportam para lá, e muito menos as grandes, com seu forte impacto na renda e nos empregos de centenas de milhares de trabalhadores.
Por isso é que defendo a isenção tributária geral. Deve durar o tempo que perdurarem as tarifas americanas, sendo o caminho mais eficiente, a curto prazo, para que nenhum exportador fique de fora do benefício fiscal. Caberá a cada um deles, naturalmente, avaliar se a tarifa menor imposta por Trump à maioria dos produtos brasileiros (mais de 600, com 10% de tarifa) é mais compensadora que a isenção tributária.
A isenção tributária representaria uma perda temporária de receita fiscal anual da ordem de cerca de 30% do valor exportado, ou seja, US$ 5,4 bilhões (ou R$ 28 bilhões), o que é uma ninharia em relação ao montante da receita fiscal do ano passado, de R$ 2,652 trilhões. Portanto, não teria efeito relevante nas contas públicas.
Também não teria grande efeito nas contas públicas se, para compensar o que as empresas de menor porte forem obrigadas a deixar de exportar para os EUA, houver um impulso na demanda interna com o aumento do salário mínimo, dos salários no setor público e dos salários em geral, nesse caso para segurar o emprego na área privada. Assim, o benefício tributário seria dividido entre empresas e trabalhadores, numa acomodação do mercado à nova realidade econômica.
Entretanto, a isenção tributária, mesmo que facilite a várias empresas brasileiras buscar mercados alternativos no exterior, só terá eficácia quando a empresa exportadora vender apenas produtos que possam ser consumidos a curto prazo. Quando destinados a investimentos de infraestrutura, de longo prazo, a eficácia é menor, porque esses investimentos dependem da elaboração de projetos complexos, de sistemas de licitação e de construção civil, em geral demorados.
Nesse caso estão justamente o aço e o alumínio brasileiros, acima mencionados, submetidos às taxas extravagantes de 50%, as maiores do mundo. Esses metais são os principais insumos para a construção de ferrovias e de casas, assim como de hidrelétricas, entre outras destinações. A melhor alternativa para absorver deles a parte que será rejeitada pelo mercado americano, e que dificilmente teria alternativa de destinação para outros países, seria o próprio mercado interno.
Nesse contexto, o governo teria que estar disposto a fazer imediatamente investimentos consideráveis na infraestrutura e na construção de hidrelétricas e de centenas de milhares de casas populares — o que coincide com nossas necessidades mais imperiosas. De fato, temos terríveis deficiências em logística e em habitações, e o nosso sistema de energia elétrica precisa ser reforçado estrategicamente.
Logística, habitações e construção de hidrelétricas são justamente os setores que mais absorvem aço e alumínio no País. A partir da ferrovia ligando Atlântico e Pacífico, cujo acordo de construção com a China já foi assinado, o Governo poderia programar uma extensa rede de ramais ferroviários de cerca de 20 mil km que cobrisse todo o território nacional, lançando as bases para a virtual eliminação dos onerosos custos logísticos que representa o transporte rodoviário no Brasil. Dessa forma, juntando ferrovia e transporte marítimo, estaríamos conectados simultaneamente com a Europa e a Ásia, através dos modais logísticos mais baratos do mundo.
Por outro lado, o governo deveria retomar imediatamente o programa Minha Casa Minha Vida, outro grande consumidor de insumos siderúrgicos e de alumínio. Ele foi desacelerado por causa de restrições ideológicas relacionadas com o fetiche do orçamento fiscal equilibrado. Contudo, nas atuais circunstâncias, em que o imperativo é salvar a economia brasileira dos efeitos do tarifaço de Trump e aproveitar o momento para acelerar o crescimento do País, é mais do que justificado fazer um déficit maior para financiar os investimentos necessários para a execução dos programas ferroviário e Minha Casa Minha Vida.
Por pressão do lobby do setor termelétrico (três famílias), que pressionou fortemente para a construção de usinas a diesel e a carvão para que funcionem como estabilizadoras do sistema elétrico do País, paralisamos a construção de hidrelétricas de médio porte, que poderiam certamente cumprir essa função. As hidrelétricas são muito mais vantajosas porque, entre seus efeitos secundários, está o controle das enchentes nas épocas de cheias e a formação de grandes lagos, onde possam ser desenvolvidos projetos de criação de peixes pelos ribeirinhos, inclusive indígenas.
O presidente Lula não deve temer o déficit orçamentário. Nos principais países europeus, ele pode alcançar no pico até 3% do PIB (no Brasil, seriam R$ 370 bilhões), sem ferir as regras fiscais e monetárias monitoradas pelo Banco Central Europeu, o guardião do euro. Alguns países, como Alemanha e França, ultrapassam esse limite, na média, sem que suas economias se desorganizem. É fato que não estão crescendo muito. O PIB da Alemanha está estagnado e o da França cresce pouco. Em nenhum caso, por causa do déficit. A escassez de energia pesa mais.
Entendo, assim, que o governo, considerando os impactos da crise que podem afetar duramente as receitas de nossas principais indústrias e os empregos correspondentes, diante do tarifaço que restringe para nós o mercado americano, deve acelerar o investimento público interno na construção de ferrovias, hidrelétricas e casas, a fim de compensá-las. Junto, virá um tremendo impulso na construção civil e no emprego. O efeito orçamentário disso, ao fim de um ciclo econômico de crescimento, será absorvido pelo aumento da receita tributária, já que o efeito final para o conjunto da economia terá sido o aumento da produção.
É evidente que, a fim de assegurar desenvolvimento sustentável, ou seja, crescimento econômico e social com estabilidade monetária, é fundamental o controle da inflação em nível razoável. Isso implica reconhecer a inflação não como uma relação estática entre demanda e oferta, mas como uma relação dinâmica entre essas duas variáveis, uma puxando a outra.
No capitalismo, para haver crescimento da produção e do PIB, a demanda deve puxar a oferta, pois, do contrário, os empresários não se sentirão estimulados a investir. Se o fizerem, não encontrarão mercado para uma parte de sua produção. Por isso, acabam migrando para o mercado financeiro especulativo — o qual, no Brasil, paga ao aplicador as taxas de juros (Selic) mais altas do mundo, inibidoras do investimento produtivo e do crescimento econômico. Isso, naturalmente, tem que acabar.
Acabar com a taxa de juros extravagante seria outra consequência natural de recorrer a grandes financiamentos públicos para cobrir investimentos em larga escala em infraestrutura, junto com os necessários para compensar a isenção em favor dos exportadores atingidos pelo tarifaço nos EUA. É que, para financiar o déficit público correspondente, o governo tem que emitir moeda ou títulos públicos, a taxas de juros não superiores a 4% nominais ao ano, aumentando a liquidez do mercado financeiro e, por aí, forçando a baixa da taxa básica de juros para um nível que entendo não dever ser superior a 2% ao ano.
Contudo, o tarifaço de Trump não representa os únicos problemas da economia brasileira: temos que nos preocupar com dois outros, dependentes de nossas próprias iniciativas — a taxa de aumento do custo de vida, embutido na inflação, e o volume da dívida pública externa geral, de cerca de R$ 10 trilhões. Quanto à inflação, de que tratei em caráter geral, a questão deve ser encarada no que diz respeito ao que ela representa para o custo de vida, naquilo que afeta diretamente o bolso das pessoas e as despesas das famílias.
De fato, um aumento expressivo do investimento público e privado, como se deseja e se propõe para garantir o crescimento do PIB, implica aumento da demanda global e, por aí, pode pressionar a inflação. Contudo, se houver resposta pelo lado da produção, como já indicado, o aumento da demanda puxa o aumento da produção e da oferta de forma dinâmica, assegurando a estabilidade monetária da economia. Além disso, a absorção pelo mercado interno dos produtos antes exportados para o mercado americano assegurará, por si mesma, o aumento da oferta.
O efeito final desses fatores sobre o custo de vida depende do planejamento público. Se o aumento do investimento geral for distribuído entre investimentos equilibrados em infraestrutura e investimentos para produção de bens de consumo popular, principalmente alimentação, vestuário e outros que representam necessidades básicas do povo, não haverá razão para o aumento do custo de vida, que deve se equilibrar com o investimento de infraestrutura planejado, o qual deve considerar também o aumento do emprego e da demanda daí resultante.
Já a gestão da dívida pública, no Brasil, está subordinada a um fetiche neoliberal, como acontece com outros da legislação fiscal e monetária. Aqui, o governo é impedido legalmente de pagar os juros da dívida pública junto com o estoque dela, com emissão de títulos novos para “pagar” os antigos. Isso se chama “rolagem”. Não há nenhuma razão técnica para esse impedimento, fora as ideológicas. Contudo, as consequências dele são nefastas.
O estoque apenas da dívida pública federal atinge R$ 8,5 trilhões, e sobre ele incide a Selic, atualmente em 15%. Já os juros, quando se considera a dívida geral, incluindo outros agentes públicos, chegam a cerca de R$ 1 trilhão. Isso não preocuparia, se não houvesse o tal fetiche de não poder “rolar” os juros. Porém, como existe esse fetiche, o governo é obrigado a desviar para pagá-los os recursos reais correspondentes do orçamento primário — discricionário e não discricionário.
Com isso, são implacavelmente cortadas, todo fim de ano, para equilibrar o orçamento primário, as despesas de maior interesse do povo — especialmente do povo pobre e das pessoas mais vulneráveis, como saúde, educação, construção de casas, saneamento básico etc. Entretanto, uma simples eliminação da restrição à “rolagem” dos juros resolveria a questão da dívida pública do Brasil, situando-a no mesmo nível do que acontece nos países sérios.
Com essas medidas, estaríamos reestruturando as relações comerciais, a economia real, o mercado financeiro e as funções públicas do Estado num mesmo movimento, aproveitando o momento do impertinente, agressivo e unilateral tarifaço americano. Um déficit público de até 3% do PIB (R$ 370 bilhões) no pico do ciclo econômico, por sua vez, como na área do euro, nos garantiria um crescimento de ao menos 6% ao ano, pelos meus cálculos. Como no dito popular, teríamos feito do limão uma limonada!
Esclareça-se que, no cotidiano da gestão orçamentária, não há que se tomar o déficit público primário de 3% do PIB acima mencionado como uma meta: ele é um momento do ciclo econômico. O governo, gastando mais do que arrecada no início do ciclo, provocará progressivamente um aumento da demanda governamental. Esta, por sua vez, induzirá o aumento da demanda privada, no mínimo na mesma dimensão.
Somando as duas demandas, a demanda efetiva global induzirá o aumento da produção e da oferta — desde que as condições de investimento, como taxa de juros baixa e prazos para pagamento, sejam favoráveis ao produtor. Daí resulta o aumento que pode chegar a no mínimo 6% do PIB, como calculo. Com ele, vem junto o aumento também da receita tributária, que deve cobrir o déficit inicial de 3%, equilibrando o orçamento e reiniciando o ciclo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.