De Getúlio a Prestes, como sujar a própria imagem
Lula e Getúlio não são comparáveis
Em outro espaço, discutia-se o papel de Getúlio Vargas na urbanização do Brasil. Na verdade, a coisa começou por conta de uma ridícula comparação entre Lula e Getúlio, recentemente divulgada por um órgão de imprensa com grande penetração. Ambos não são comparáveis. São momentos históricos distintos, com graus muito diversos de desenvolvimento e visibilidade internacional, coisas que não interessam no momento. O que importa é que o debate girou em torno de o saldo de Getúlio ter ou não sido significativo para a industrialização do país, trazendo-o de uma economia predominantemente primária para outra predominantemente apoiada no setor secundário. Isso significa que o Brasil, na sua gestão, passou de uma enorme e ineficiente plantação para uma florescente indústria.
Evidentemente, o saldo jamais será positivo, porque nada justifica a violência ou a desonestidade intelectual do Estado, o que foi constante no período Vargas, mormente no Estado Novo. Ao mesmo tempo, não se pode negar que houve, sim, resultados positivos, mesmo que o saldo não o seja.
Como uma coisa leva a outra, vieram-me à mente dois eventos de março de 1936. Ambos me comprimem o peito e fazem pensar como muitos líderes se esforçam para sujar o próprio nome, a própria imagem. Trata-se da entrega de Olga Benário, judia, grávida e comunista, à Gestapo, que ocorreu quase concomitantemente com o assassinato de Elza Fernandes, cujo nome verdadeiro era Elvira Cupello Calônio.
A primeira era filha de um advogado alemão, uma mulher preparada intelectual e militarmente, com treino que se estendeu à pilotagem de aviões. A segunda, uma garota de catorze anos, analfabeta, filha de um imigrante italiano. Trabalhavam como babá e auxiliar doméstica, sem a menor perspectiva de ascensão social.
A primeira era consciente de seu papel, tendo fugido da Alemanha para a União Soviética na década anterior, onde foi preparada para acompanhar Prestes em sua missão revolucionária no Brasil. Seu relacionamento com Prestes tornou-se íntimo pela vontade adulta de ambos. Para a União Soviética, ela tinha valor como revolucionária; para os nazistas, ela valia como troféu do anticomunismo e do antissemitismo. Ela foi morta na câmara de gás em 1942, deixando sua filha, Anita Leocádia Prestes, que foi resgatada pela avó brasileira, tornando-se historiadora e escritora. Seja pela sua atuação, seja por seu legado, Olga tem importância indiscutível na história do século XX. Sem dúvida, a falta da mais pequena empatia por parte do Estado brasileiro, na figura de Getúlio Vargas e Filinto Müller, é uma mancha indelével na História do Brasil.
Em oposição, Elza foi um nada aos olhos do Partido Comunista Brasileiro e, menos ainda, perante o Estado de nosso país. Ela foi levada por Antônio Maciel Bonfim, codinome Miranda e secretário do partido para o Brasil, de Sorocaba, sua terra natal, para o Rio de Janeiro. Lá, ela foi tida como “namorada” de Miranda, mas tudo indica que não passasse de mão de obra barata, cozinhando e limpando para todos no aparelho. Era analfabeta, e isso a fez ser libertada depois de um breve interrogatório na sede do DOPS do então Distrito Federal. Por ter acesso a Miranda, o partido passou a desconfiar de que ela fosse informante, inclusive repassando documentos secretos à polícia, o que não poderia acontecer, pelo menos não por intenção própria, visto que era analfabeta. A execução da garota foi ordenada, expressa e documentalmente, por Prestes, três dias antes de ele e Olga serem presos.
A interpretação do evento é controversa, mas o fato é que todos falharam com ela. Embora não se saiba a data exata de nascimento de Miranda, ele era pelo menos vinte anos mais velho que ela. Hoje, pelo ECA, ele seria acusado de sequestro e estupro de vulnerável. Naquele tempo, seria acusado de abuso de menor; mesmo assim, um crime. A polícia, em vez de protegê-la, devolvendo-a para os pais ou, no mínimo, acolhendo-a, devolveu-a para o mesmo ambiente onde foi presa. Finalmente, o julgamento interno ao partido não passou de oportunismo criminoso, pois, se era para punir alguém, que se punisse o mais desimportante: a Elza. Prestes foi julgado como mandante do crime e condenado a vinte anos de reclusão, mas foi solto pela ditadura em abril de 1945 como símbolo da adesão de Getúlio aos aliados, cedendo às pressões pela redemocratização.
Elza ficou em segundo plano novamente. Não foi citada por Jorge Amado em Cavaleiro da Esperança. Fernando Moraes a citou marginalmente em Olga, de 1985. Jacó Gorender a mencionou de passagem em 1987, em Combate nas Trevas. William Waack explanou mais cuidadosamente em 1993, em Camaradas. Sérgio Rodrigues foi o único a tratar do assunto como foco central em Elza, a Garota, de 2008, com reedição em 2018. As duas obras anteriores têm um viés de direita. Já a menção de Anita Leocádia Prestes em Luís Carlos Prestes, um comunista brasileiro, de 2017, é escusatória. A obra procura atribuir o imbróglio à pressão contrária do momento. Nenhuma vê, como eu estou tentando pôr aqui, o foco em como todos – absolutamente todos – falharam em proteger aquela menina como menina que era.
Isso sujou a imagem de Prestes? Por certo que sim, da mesma forma que Olga sujou mais um pouco a imagem de Vargas. O fato é que, geralmente, os líderes não sabem quais são os limites do seu quinhão de poder e cruzam as riscas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.