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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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Brasil e Venezuela: Da Crise à Integração Estratégica – Uma Proposta Binacional para o Norte da América do Sul

A verdadeira integração regional se faz com pragmatismo

Os presidentes da Venezuela, Nicolas Maduro, do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

As relações entre Brasil e Venezuela nas últimas décadas têm sido um exercício complexo e contraditório. O débito que a Venezuela mantém com o Brasil, originado por financiamentos do BNDES, tornou-se um símbolo desse relacionamento—um empréstimo de alto risco, visto como irrecuperável, e que refletiu uma fase de aposta em parcerias estratégicas que subsequentemente se desfizeram. É crucial reconhecer que a profunda crise humanitária e política que se abateu sobre a Venezuela coincidiu com um período de gestão no Brasil marcado por um alinhamento incondicional com os interesses geopolíticos dos Estados Unidos. Essa subserviência alardeada pelo então presidente foi personificada pela visita do vice-presidente estadunidense à fronteira Brasil-Venezuela, um gesto de claro apoio a uma estratégia de isolamento e pressão, que contou, paradoxalmente, com o apoio interno de setores do agronegócio brasileiro.

No entanto, a geopolítica é dinâmica. As crises mais profundas podem abrir espaço para soluções transformadoras que realinhem interesses de forma mais pragmática e vantajosa. A atual fragilidade venezuelana, somada à necessidade brasileira de atingir mercados globais com maior eficiência, criaria uma oportunidade ímpar para uma parceria baseada não em ideologia, mas em interesses mútuos concretos e numa visão estratégica de longo prazo para a América do Sul.

Um dos pontos mais sensíveis dessa equação seria o estado de Roraima. Localizado no extremo norte, seu território de cerrado é apto para a agricultura moderna de grãos. Roraima já produz, mas escoa sua produção de maneira precária. Cercado por três fronteiras internacionais e distante dos portos nacionais, o estado depende hoje de rotas longas e ineficientes, muitas vezes através do porto de Georgetown, na Guiana. Essa dependência colocaria a segurança logística e económica de Roraima nas mãos de um país estrangeiro, aumentando sua exposição a riscos externos. Roraima gera riqueza, mas não controla seu caminho para o mar.

A solução para essa dupla questão—a vulnerabilidade logística de Roraima e o impasse do débito venezuelano—poderia residir numa proposta ousada de integração binacional. Inspirado no bem-sucedido modelo de Itaipu, o projeto preveria a criação de uma empresa controlada igualmente por Brasil e Venezuela, com objetivo claro de construir e operar um porto de águas profundas no nordeste venezuelano—região do Golfo de Paria e Delta do Orinoco, o ponto mais próximo do Brasil—e uma ferrovia que ligasse Roraima a esse novo terminal.

Sob essa proposta, o débito venezuelano junto ao Brasil seria convertido em participação acionária inicial na empresa binacional. Os lucros gerados pela operação do porto e da ferrovia seriam auditados por firmas internacionais e, inicialmente, a parte da Venezuela seria direcionada à quitação do valor devido. Uma vez quitado o débito, a empresa passaria a operar em regime de paridade completa, com divisão igualitária de resultados e gestão compartilhada.

Aqui residiria um dos aspectos mais estratégicos da proposta: ela realinharia as forças políticas internas do Brasil de forma favorável ao projeto. Os mesmos produtores rurais que outrora apoiaram uma postura de confronto tornar-se-iam os principais interessados e aliados desta nova iniciativa. A razão seria económica e direta: uma rota ferroviária e portuária mais curta e eficiente significaria uma redução drástica no custo do frete, aumentando diretamente a rentabilidade da sua produção. O projeto, portanto, conquistaria o apoio de uma das bases económicas mais influentes do país ao oferecer um benefício tangível, transformando um antigo antagonismo num pilar de sustentação doméstica para a política de Estado.

Para a Venezuela, os benefícios seriam igualmente claros: alívio imediato de um passivo internacional, ganho de infraestrutura portuária de nível global apenas com investimento inicial em mão de obra, além da reinserção estratégica na economia regional ao lado do maior parceiro da América do Sul. Para o Brasil, significaria assegurar uma rota exportadora própria e eficiente, consolidar o desenvolvimento do Norte, proteger a fronteira por meio do desenvolvimento e transformar um crédito questionável num ativo gerador de riqueza.

Haveria, ainda, um elemento geopolítico crucial: a existência de uma alternativa viável pela Guiana conferiria ao Brasil uma alavanca negociadora. O projecto binacional ofereceria à Venezuela a oportunidade de contrapor-se à influência guianesa e evitar que o Brasil aprofundasse laços logísticos e económicos exclusivos com o seu vizinho.

Mais do que infraestrutura, esta proposta seria a construção de um novo futuro. Tratar-se-ia de transformar uma zona de incerteza e dívidas num polo de crescimento compartilhado, demonstrando que a verdadeira integração regional se faz com audácia, pragmatismo e uma visão clara de mutualidade. A oportunidade está aberta. Resta saber se há vontade política para aproveitá-la.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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