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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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Abaixo os carros autônomos

Se houver algum deus no Universo, que nos livre desse tormento. De quebra, livre-nos também da autonomia do Banco Central

Trânsito lento nos dois sentidos da avenida 23 de maio. (Foto: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas)

Em “A Árvore do Sexos”, o autor Santos Fernando (1927 – 1975) descreve dois personagens que capazes de provocar medo em quais pretensos adquirentes de automóveis autônomos. O primeiro é um investigador surdo-mudo[1] que está encarregado de inquirir as testemunhas acerca dos acontecimentos derivados da gravidez generalizada na cidade. O fenômeno atribui-se às moças terem ingerido os frutos fálicos nascidos de uma árvore exótica da praça central. O segundo é um motorista de táxi que, quando o passageiro informava o endereço de destino, respondia: “Vou para onde quero, quando quero e pelo caminho que escolho”. Trava-se de um motorista autônomo, que tinha vontade própria. Medonhos são os carros autônomos porque se assim o são, há de terem de querer e carros nãos podem ter querer, daí o correto é chama-los de carros autômatos. Espera-se  que sejam capazes de desempenhar sozinhos o que os seres humanos lhes solicitam. Nâo podem, porém, ser autônomos, qualidade atribuída, por exemplo, ao Banco Central do Brasil.

A autonomia é inerente ao poder de decisão. Um trabalhador autônomo, por exemplo, estipula seu horário de trabalho e não se restringe a um hierarquia. Claro que ele será obrigado a seguir a liturgia de sua função, mesmo assim, mantem-se intacta sua liberdade. Mesmo o taxista maluco do livro citado acima tem que seguir as leis, mas passa da autonomia à rebeldia ao não acatar o endereço pedido pelo passageiro. Por ser autônomo, se não quiser trabalhar, vai para casa e ninguém pode impedir.

 Carros não têm querer, são meros robôs. A palavra "robô" tem uma origem fascinante! A palavra "robô" vem do tcheco "robota", que significa trabalho forçado ou "servidão". Foi criada pelo escritor tcheco Karel Čapek (1890 – 1938) em sua peça de teatro "R.U.R." (Rossum's Universal Robots), estreada em 1920. Na peça, Čapek apresentou uma visão futurista de seres artificiais criados para realizar trabalhos pesados e repetitivos, libertando os humanos dessas tarefas. A palavra "robota" foi escolhida para enfatizar a ideia de que esses seres artificiais estavam condenados a realizar trabalhos forçados, sem liberdade ou autonomia. A peça foi um sucesso, e a palavra "robô" logo se espalhou pelo mundo, tornando-se um termo comum para descrever máquinas ou seres artificiais capazes de realizar tarefas automáticas ou semiautomáticas. Desde então, a palavra "robô" evoluiu para abranger uma ampla gama de significados, desde robôs industriais e robôs de serviço até robôs humanoides e inteligência artificial. Mas sua origem está firmemente enraizada na peça de Čapek e na palavra tcheca "robota". 

 A palavra "autônomo" vem do grego "αὐτόνομος" (autonomos), que é composta por duas partes: "αὐτός" (autos), que significa "próprio" ou "si mesmo" "νόμος" (nomos), que significa "lei" ou "regra" Portanto, a palavra "autônomo" originalmente significava "que se governa por si mesmo" ou "que tem suas próprias leis". No contexto grego antigo, a autonomia se referia à capacidade de uma cidade ou estado de se governar de forma independente, sem interferência externa. Com o tempo, o conceito de autonomia se expandiu para incluir outras áreas, como a filosofia, a psicologia e a tecnologia. Hoje, a autonomia é frequentemente associada à capacidade de tomar decisões independentes, agir de forma autossuficiente e ter controle sobre si mesmo, como se passou a esperar do Banco Central a partir da lei complementar 179/2021.

 A meu ver, carros estão muito mais para robôs sofisticados do que para seres autônomos. Quem decide seu o destino é o seu ocupante, a rota é imposta pelo aplicativo de mapas, cuja fonte é composta pelas informações advindas dos Correios, ao passo que sua localização depende do GPS. A rigor seu quinhão de autonomia reduz-se a seguir o tráfego e desviar-se de obstáculos. Até nisso o automóvel é limitado pelas leis de trânsito. Resumindo, sua autonomia é nenhuma. O correto é carro autômato. Ele seria autônomo se o tivéssemos de convencer acerca do destino e do horário de partida:

-- Leve-me a casa de minha irmã.

-- Não, ela está viajando.

-- Eu preciso deixar um envelope na caixa do correio.

-- Nesse horário, o trânsito está pesado. Vamos mais tarde.

-- Mais tarde, estarei ocupado.

-- Está bem, pode entrar.

 Se houver algum deus no Universo, que nos livre desse tormento. De quebra, livre-nos também da autonomia do Banco Central.

[1] Termo já em desuso, devendo ser substituído por surdo librado, ou simplesmente surdo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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