A urgente reforma da ONU
O Conselho de Segurança da ONU é órgão de composição inteiramente obsoleta, escreve Marcelo Zero
Há muito se fala da necessidade crucial de uma Reforma da ONU, especialmente do seu Conselho de Segurança, órgão estratégico que cuida da segurança coletiva do planeta.
Como se sabe, trata-se de órgão de composição inteiramente obsoleta, que ainda reflete o cenário internacional que existia logo após a Segunda Guerra Mundial.
Com efeito, a composição do Conselho, herdada diretamente daquele conflito, não acompanhou a evolução geopolítica do mundo, o qual mudou profundamente, especialmente nestas décadas do século XXI.
Em 1945, em uma época ainda colonial, havia apenas 51 estados independentes para um CSNU integrado por 11 membros (representando, assim, 22% do total).
Atualmente, são 193 estados para 15 membros (representando, portanto, somente 7,7% do total).
Ademais, os membros permanentes e originários do CSNU (EUA, França, Reino Unido, Rússia e China- basicamente os vencedores da Segunda Guerra Mundial) ainda mantêm a capacidade de vetar, solitária e unilateralmente, quaisquer propostas que cheguem ao Conselho.
Historicamente, o Brasil advoga que apenas um Conselho de Segurança verdadeiramente representativo, com ampla participação de países em desenvolvimento e do Sul Global poderá traduzir adequadamente os interesses da comunidade internacional. A expansão do CSNU, com o ingresso de novos membros, permanentes e não permanentes, contribuiria para que as decisões do órgão, que afetam toda a comunidade internacional, sejam tomadas com mais equilíbrio e de forma mais inclusiva, legítima e eficaz. Nesse contexto, o Brasil tem procurado atuar com seus parceiros para injetar maior dinamismo político, no processo de reforma.
Nesse debate imprescindível, que ganhou intensidade a partir dos anos 1990, com a queda da União Soviética, o Brasil juntou-se à Alemanha, Índia e Japão para formar o denominado G-4. A criação do grupo foi formalizada em Cúpula promovida pelo Japão, em setembro de 2004.
Ironicamente, foi também a partir também dessa época que o unilateralismo dos EUA, sem o limite dado pelo bloco soviético, começou a se aguçar e a se impor, de forma global.
A ONU passou a ser basicamente um instrumento dos EUA e de seus aliados.
Não obstante, a relação da então hiperpotência inconteste com a ONU sempre foi complexa e contraditória, Os EUA nunca aceitaram bem o princípio do multilateralismo e limites efetivos ao exercício de seu imenso poderio mundial.
Sempre que a ONU não aceitou suas vontades e decisões, os EUA agiram unilateralmente ou em conjunto com alguns aliados, via Otan, por exemplo, no conflito da Iugoslávia, na guerra do Iraque, na guerra da Líbia etc.
Obviamente, a combinação da ausência de representatividade da ONU e do seu Conselho de Segurança com o unilateralismo dos EUA corroeu a construção de uma ordem mundial mais simétrica, inclusiva e pacífica.
A situação atual, contudo, piorou muitíssimo com Trump, um presidente que é frontalmente hostil à ONU e a todas as instituições multilaterais.
Trump, de fato, tem absoluto desprezo pela ONU e suas agências. Sua visão delirante do “globalismo” como um complô do “marxismo cultural” torna a ONU, no mínimo, segundo seu entendimento, uma instituição a ser enfraquecida e, se possível extinta, via crescente asfixia financeira, já em curso.
Por conseguinte, se a Reforma da ONU e do seu Conselho de Segurança já era considerada vital, há décadas, agora ela se tornou-se urgente, face ao fenômeno Trump e seu desprezo pela ONU, seu unilateralismo hobbesiano e seu protecionismo desvairado, que pode multiplicar-se. A ideologia “antiglobalista” e a crescente xenofobia são outros fenômenos que conspiram contra a construção de uma ordem global renovada e representativa dos povos.
Parece-nos que a resistência ao unilateralismo de Trump teria de contar com uma ONU renovada. Ter um grupo como o BRICS, embora muito importante para fazer o contraponto geopolítico ao unilateralismo, não é o suficiente. Precisamos de instituições amplamente multilaterais que funcionem para o bem da maioria da população global.
Especialmente numa ONU que se assente mais nos interesses do Sul Global e que represente melhor os interesses dos países que compõem a maioria planetária.
Nesse sentido, o ideal seria que tanto o presidente da Assembleia-Geral quanto novo Secretário-Geral da ONU venham do Sul Global. Ter uma nova presidenta da Assembleia-Geral da Alemanha (a senhora Baerbok, ex-ministra de relações exteriores desse país) ou um novo Secretário-Geral do Norte Global estaria longe do desejado, na atual conjuntura.
Em especial, seria conveniente e oportuno que o novo Secretário-Geral, a ser eleito em 2026, venha da América Latina e Caribe, como deseja o Brasil. Aliás, o Brasil defende a proposta de que a ONU seja dirigida por uma mulher latina. A chilena Michelle Bachelet, por exemplo, seria uma excelente candidata. Seria a primeira mulher a ocupar esse estratégico cargo.
De qualquer forma, o ponto a ser destacado é que a imprescindível Reforma da ONU e do seu Conselho de Segurança avançaria mais rápida e decisivamente se essas instituições se abrissem mais aos interesses e anseios do Sul Global.
Saliente-se que, computados os posicionamentos nas negociações e em manifestações oficiais recentes, estima-se que cerca de 160 países já expressaram apoio à ampliação do CSNU.
A Liga da Nações, que precedeu a ONU, fracassou, entre outros fatores, pela falta de cooperação entre os países, pela não participação dos EUA e da União Soviética, por não ter um executivo forte e por não ter evitado a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Mas talvez a maior causa do fracasso da Liga das Nações tenha relação com o fato de que se tratava, essencialmente, de um empreendimento europeu, extremamente estreito.
A ONU, como vimos, nasceu também muito estreita, em um mundo de poucos países soberanos, dominado por poucas potências (basicamente duas). E, embora, o número de seus membros tenha se expandido muito, isso não se refletiu em seu principal órgão.
A tragédia da ausência de multilateralismo, que assola a atual conjuntura mundial, é especialmente evidente na paralisia da OMC, que facilita o protecionismo desastrado e ilimitado de Trump.
Trump, felizmente, será, creio, um fenômeno passageiro, dada à sua disfuncionalidade para boa parte do próprio capitalismo dos EUA.
Mas a humanidade deverá continuar e, com ela, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que a ONU concebeu para todos os países cumprirem, como erradicar a pobreza em todas as suas formas; alcançar a segurança alimentar, acabar com a fome e melhorar a nutrição; garantir uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem para todos; alcançar a igualdade entre os sexos e empoderar todas as mulheres e meninas; garantir a disponibilidade e o gerenciamento sustentável da água e do saneamento para todos; promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, promover emprego pleno e trabalho decente para todos; reduzir as desigualdades dentro e entre os países; tomar medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e seus impactos etc.
O multilateralismo é a única saída civilizada da nossa humanidade comum. E uma ONU renovada é mais necessária que nunca.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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