Marcelo Zero avatar

Marcelo Zero

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

485 artigos

HOME > blog

A Groenlândia é fichinha

'A sanha unilateralista e privatista não se estende apenas ao espaço cósmico. Os EUA e suas empresas também querem explorar os fundos marinhos internacionais'

Presidente dos EUA, Donald Trump (Foto: Leon Neal/Pool via REUTERS)

Dizia-se que a Lua pertencia aos apaixonados. Esse ditado romântico caducou.

Agora, sabe-se que a Lua pertencerá aos apaixonados por dinheiro e poder.

A paixão de Elon Musk e de outros bilionários pelo espaço não é isenta de interesses. Há, potencialmente, muito a se lucrar com atividades espaciais.

Tanto o governo dos EUA como esses bilionários sabem disso.

Um exemplo (apenas um) seria o da mineração de Hélio-3.

O Hélio-3 é um isótopo do hélio que é raríssimo na Terra, mas que é abundante na Lua. É que o Hélio-3 vem do Sol e o campo magnético da Terra impede seu acúmulo na superfície terrestre. O mesmo, evidentemente, não ocorre na Lua, que não tem campo magnético. Assim, há muito Hélio-3 na superfície de nosso satélite.

O Hélio-3 é considerado um isótopo de altíssimo valor estratégico, pois poderia ser usado na fusão nuclear (o Santo Graal da energia limpa e abundante), e também na computação quântica, que promete ser muito mais poderosa que a computação convencional.

Por conseguinte, quem tiver acesso a esse isótopo, terá imensas vantagens comparativas.

Acontece que há um grande tratado internacional, o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes, de 1967, mais conhecido como The Outer Space Treaty (OST), que regula a exploração espacial.

Os dois primeiros artigos desse Tratado têm a seguinte redação:

Artigo I

A exploração e uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, só deverão ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.

O espaço cósmico, inclusive a lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes.

O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, estará aberto às pesquisas científicas, devendo os Estados facilitar e encorajar a cooperação internacional naquelas pesquisas.

Artigo II

O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.

É cristalino, portanto, que o Outer Space Treaty (OST) proíbe que qualquer país ou empresa possa se apropriar de quaisquer recursos da Lua, de outros corpos celestes ou do espaço cósmico em geral. Tal exploração só poderia ser feita em benefício de toda a humanidade.

Não obstante, o governo dos EUA já decidiu que esses princípios fundamentais do OST não se aplicam às companhias americanas, pois esses princípios não seriam “autoaplicáveis”. Caberia aos Estados nacionais decidir como proceder e como regular suas atividades espaciais.

Nesse sentido, os EUA, de forma inteiramente unilateral (que surpresa!), já promulgaram leis próprias para facilitar a ação de empresas estadunidenses no espaço exterior.

Desse modo, o governo dos EUA já implementou pelo menos duas leis para cumprir tal objetivo, como a The Commercial Space Launch Competitiveness Act (CSCLA) e o Artemis Acord, as quais permitem a extração privada de recursos do espaço e dos corpos celestes, sob supervisão somente doméstica (nacional) das atividades.

Com isso, o Tratado do Espaço virou pó. Mais fino que o pó cósmico. A Lua poderá pertencer, de fato, a Elon Musk e outros; não à humanidade.

Contudo, essa sanha unilateralista e privatista não se estende “apenas” ao espaço cósmico.

Os EUA e suas empresas também querem se apropriar e explorar os fundos marinhos internacionais. Essa região é denominada de “Área” pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e, segundo o próprio texto dessa convenção, pertence à Humanidade. Pois bem, essa região é muito rica em nódulos polimetálicos, os quais contém minerais raros e estratégicos.

Os EUA e suas empresas querem explorar esses nódulos à vontade.

A situação está tão crítica que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, está pedindo que o fundo do mar não se torne um "faroeste". Guterres é forte crítico dessa política unilateral e predatória dos Estados Unidos.

A ONU afirma que os oceanos estão em estado de "emergência" e que os líderes mundiais devem tentar reverter a situação em um momento em que as nações ainda debatem quais políticas adotar em relação à mineração em águas profundas, resíduos plásticos e pesca predatória.

Daqui a pouco, não duvido, os EUA vão denunciar o Tratado da Antártica para explorar as ocultas e muitas riquezas daquele continente, que também pertence à Humanidade.

A Groenlândia, como se vê, é fichinha. O céu é o limite.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados

Carregando anúncios...