38 anos e um Semideus
Aos que odeiam o Gabi. Aos recalcados, aos ressentidos, termino esta crônica com frases poéticas que não são minhas: Deus me livre da maldade de gente boa
Eu tinha apenas 10 anos de idade, era uma noite de segunda-feira, eu morava em Olaria, com meus tios e avó, e era vidrado no time de futebol mais especial que eu vi jogar, o Flamengo de Zico. Depois de uma noite trágica em Santiago, em que o bom time do Cobreloa, mas muito abaixo do Flamengo, tinha tentado fazer uma carnificina em campo, ao contrário de jogar futebol, e saiu com uma vitoria de 1 x 0, num gol contra de Leandro, o mais flamenguista dos jogadores rubro-negros, a ansiedade de toda uma nação pelo terceiro jogo era evidente. Apenas dois times brasileiros haviam sido campeões da Libertadores, Santos de Pelé e o Super Cruzeiro de 75. Até o incrível Internacional de Falcão não havia conseguido vencer a Libertadores, que era assunto restrito a argentinos e uruguaios. O excepcional time de Zico, o segundo melhor time brasileiro do século XX, só sendo inferior ao Santos de Pelé, quebraria também esta escrita. Lembro do jogo tenso, mas dominado pelo Flamengo. E o segundo gol, numa cobrança mágica de Zico, uma pintura de Miró, um prosema de sonho de Cortázar, e eu disparar louco pelo nono andar do mesmo prédio em que moro hoje (depois de morar em tantas casas que nem me lembro mais), agora mudado em oitavo por graça e mágica de classificações urbanísticas, gritando como um insano, porque era campeão da Libertadores.
Depois foram 38 anos de dores e de vexames. O gol de Jair no Maracanã, numa derrota para o Peñarol, que não aconteceria em tempos modernos de VAR, já que o excelente Penharol batia até na mãe, e houve um pênalti sobre o Zico, que além de pênalti daria expulsão e gancho de 2 anos e 5 anos em regime fechado para o zagueiro do Penharol. Houve o empate injusto com o Grêmio, em 0 x 0 no terceiro jogo, em que o Flamengo perdeu um caminhão de gols e foi eliminado em 1984. E, a partir daí, uma série absurda de vexames e desclassificações horrendas, muitas ainda na primeira fase. Um jogo em que fomos assaltados na Bombonera contra o Boca, um em que quase conseguimos devolver a derrota contra a Universidad do Chile em Santiago, mas Vinícius Pacheco preferiu se jogar na área em lugar de chutar a gol. Houve a tragédia contra o América do México em pleno Maracanã.
De 1981 a 2019 foram 38 anos de vexames, alguns em que nem da fase de grupos passávamos e a ideia fixa de que o Flamengo era um time sem tradição internacional, que só havia ganhado a Libertadores porque teve aquele escrete fora de série de Zico-Júnior-Leandro, e que estaríamos, como em “Cem anos de solidão”, presos em Macondo, condenados a amargar eternamente ser motivo de pilhérias por desclassificações ridículas para Palestinos, Universidades, Américas do México e congêneres não muito tradicionais no futebol sulamericano. Neste período fomos ultrapassados ou igualados em conquistas por quase todos os grandes times brasileiros e estar nas libertadores era mais um incômodo e um sofrimento do que uma esperança.
Eu tinha 48 anos no dia 22 de novembro de 2019. Dos 10 anos de idade no segundo gol do Zico, à véspera de Gabigol tornar-se um semideus, eu tinha perdido a virgindade, casado duas vezes e, contando com uma relação que durou quase 5 anos, tido 3 relações estáveis, trocentas namoradas, realizado 90% das minhas fantasias eróticas, minha Portela saiu da fila dos títulos nas escolas de samba, tive duas filhas maravilhosas e criei um enteado como filho, vi o Lula ser eleito duas vezes, a Dilma ser eleita e reeleita e o Brasil tomar um golpe por uma aliança muito esquizofrênica da extrema esquerda com a extrema direita, passei em concurso público, consegui uma razoável estabilidade financeira – a estabilidade financeira endividada de classe média –, fiz duas faculdades, uma especialização, dois mestrados, plantei algumas árvores, escrevi 5 livros e poderia morrer feliz, sem recalques e ressentimentos, só que não.
Eu confesso, até o dia 22 de novembro de 2019 eu era um recalcado e um ressentido. Ainda que o Flamengo fosse hexa, ainda que tivesse ganhado todos os títulos e seja o único carioca campeão do mundo, incluindo o basquete e o sub 20 (além de ter sido a base da seleção de basquete bicampeã mundial e Kanela ter sido o técnico), apesar disto tudo, eu era um ressentido pelas seguidas frustrações das perdas de Libertadores na minha idade adulta. Não aguentava a zombaria da mídia e das torcidas adversárias dizendo que o Flamengo não tinha tradição em competições internacionais, e que o time de Zico tinha sido um ponto fora da curva.
E eis que surge o Zé Pilintra, o Exu Catimbeiro, o kizombeiro – que nos fez o favor de ignorar solenemente, em momentos distintos, o triunvirato do mal: Cláudio Castro, Bolsonaro e Rodolfo Landim. Gabigol tem alma de Flamenguista, o carioca que nasceu em Santos, o predestinado semideus Gabigol. Vão me falar que não foi Gabigol que ganhou sozinho 2019, vão me falar de investimento, vão me falar de Jorge Jesus, vão me falar que com aquele time o Flamengo seria campeão de qualquer jeito. São uns cretinos, uns idiotas da objetividade. Sinto pena de vocês.
Em não acredito nem em destino, nem em determinismos. Sim, o time de 2019 era um timaço, o de 2022, nem tanto. Sem o predestinado Gabigol não teríamos ganho nem uma das duas Libertadores.
O fato e que somente duas entidades rubro-negras fizeram gols em finais de Libertadores, um é nosso Deus, Zico, outro é seu profeta-Maomé, Gabigol.
Eu assisti o jogo em minha casa, na mesma Olaria de 1981 – depois de me mudar e viver em dezenas de casas e 4 cidades diferentes –, como 99% da Nação que, infelizmente não teve grana para viajar para Lima. Apreensivo, nervoso, ansioso, com o medo estampado de sofrer mais uma decepção. O SuperFlamengo de Jorge Jesus e seus 11 apóstolos já tinha matado o imortal, com um 5 x 0 no Maracanã (e logo o Grêmio, que era uma toca eterna do Flamengo), já tinha eliminado o Internacional no Beira Rio e chegava favorito contra um supercampeão, o River. Num primeiro tempo muito truncado, em que achei que o Flamengo nem jogou tão mal assim, nosso jogo não entrou, e num cochilo da zaga tomamos um gol que fez muita gente rezar para todos os santos.
Eu sou muito ateu, minha única religião é o Flamengo, aí, nestas horas, abro mão do meu ceticismo. Eu oro e rezo para Jeová, para Jesus, para São Judas Tadeu, para Buda, Maomé, Zé Pilintra, faço promessas que eu nunca vou pagar, desde que o Flamengo reaja e vença. O gol do River foi tão pesado que na praça em frente a minha casa, onde centenas de torcedores da “Fla-Olaria” estavam reunidos, o silêncio foi de um sepulcro, dava para cortar o silêncio com um canivete. Minha esposa e enteado trancaram-se o primeiro tempo todo no quarto e não queriam mais assistir. Eu, que sou daqueles Flamenguistas que assiste o jogo até o fim, mesmo que o Flamengo esteja tomando de 4 x 0, irracionalmente esperando uma virada, não saí da sala nem para cuspir ou mijar.
Veio o segundo tempo e claramente o Flamengo melhorou, num jogo muito nervoso e encardido. Eu chamei meus familiares de volta para a sala e falei convicto e profético: “estamos melhor, vamos empatar”. Tinha plena convicção que iríamos empatar e ganharíamos na prorrogação, porque teríamos mais fôlego, e estávamos melhor na partida. Acertei um prognóstico, o do empate, errei outro, o de vencer na prorrogação, afinal, este Exu Zombeteiro, Gabigol, ri das previsões. No minuto cabalístico 43, a Santíssima Trindade do Jesus de 2019, Bruno Henrique, Arrascaeta e Gabigol entrou em ação, e aí não há tabu ou prognóstico que resistisse, e lá estava nosso Semideus predestinado, bem colocado para empurrar para as redes e levar ao choro cada um dos rubro-negros que assistiu ao jogo.
Momento de catarse. De levantar a cabeça e sair do sofrimento e do desespero. Boa parte da Nação sequer assistiu o segundo gol, porque estava chorando ou rezando depois do primeiro. Tanta gente tão ocupada em expurgar a própria angústica, a própria aflição de 38 anos de humilhação que não viu o Semideus ordenar a Diego Ribas que o lançasse. Aí o Gabigol da favela, da comunidade, das peladas, deu um drible no revés. Um toquinho não faltoso no corpo do Pinola, muito maior e mais corpulento que o nosso Zé Pilintra Gabi foi o suficiente. A malandragem deste carioca que nasceu em Santos, escreveu a página mais gloriosa da maior de todas as finais de Libertadores.
Bola com força dentro do gol, um orgasmo, um êxtase, uma loucura e um frenesi coletivo. Se no dia 22 de novembro eu morreria um homem ressentido e recalcado, ali não me faltaria mais nada, morreria feliz, com todos os meus desejos cumpridos na terra. Gabigol errou ao dizer ontem, em sua breve despedida do Flamengo, que entrou para imortalidade rubro-negra em 2024. Ele entrou no pantão dos Deuses Rubro-Negros em 2019, junto com Valido, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Vavá, Dida, Rondinelli, Nunes, Petkovic, Doval, Carlinhos, Adriano, Zico, Júnior, e com lugar de destaque, entre nossos deuses principais.
Nunca vi tanta gente chorar de felicidade junta, tirando a posse do Lula em 2003 ou o retorno dele em 2023.
Tem que ser um ser humano muito feio, com a alma mutilada para ser flamenguista e odiar Gabigol.
Ele nos deu a maior sensação de felicidade desde o gol de falta de Zico contra o Cobreloa em 1981.
Aos que odeiam o Gabi. Aos recalcados, aos ressentidos, termino esta crônica com frases poéticas que não são minhas:
Deus me livre da maldade de gente boa.
Ou, Vamos pedir piedade, senhor, piedade, para esta gente careta e covarde!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: