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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Refragmentação da economia global

A refragmentação pode abrir novas janelas de oportunidade para os países do Sul Global — mas não sem riscos e contradições

(Foto: Gerada por IA/DALL-E)

Nos últimos anos, a economia mundial tem assistido a um processo de refragmentação, marcado pelo enfraquecimento do multilateralismo, por cadeias de valor mais regionalizadas, por tensões geopolíticas crescentes e por uma virada em direção a políticas industriais nacionalistas. 

Esse movimento, que representa uma inflexão em relação à era da hiperglobalização que marcou as décadas de 1990 e 2000, vem sendo intensamente debatido por economistas de diferentes matizes. Entre os pensadores de esquerda e heterodoxos, há um consenso: a refragmentação pode abrir novas janelas de oportunidade para os países do Sul Global — mas não sem riscos e contradições.

1. Globalização sob crítica - Economistas como Ha-Joon Chang, Dani Rodrik, Jayati Ghosh, Carlos Medeiros e Gabriel Porcile partem de uma crítica comum à globalização neoliberal. 

Para Chang, a liberalização do comércio e dos investimentos foi imposta aos países em desenvolvimento sob a promessa de prosperidade, mas serviu principalmente para impedir que esses países adotassem as mesmas estratégias de desenvolvimento — como proteção seletiva e política industrial — utilizadas pelas nações ricas em seu próprio processo histórico. Ele chama esse processo de “chutar a escada”.

Dani Rodrik, por sua vez, afirma que a hiperglobalização foi além dos limites saudáveis ao submeter as políticas econômicas nacionais às regras do comércio e do capital internacionais. Seu conhecido “trilema da globalização” sugere que é impossível conciliar simultaneamente integração econômica profunda, soberania nacional e democracia. Os países podem optar por priorizar a globalização e a democracia, a soberania nacional e a democracia, ou a globalização e a soberania nacional, mas não podem ter os três ao mesmo tempo e na sua totalidade. Este conceito é particularmente relevante num contexto de globalização crescente e de debates sobre a eficácia de instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), que podem ser vistas como limitantes da soberania nacional. O ‘trilema” tem implicações importantes para as decisões políticas dos Estados, que precisam ponderar os custos e benefícios de cada combinação de objetivos. 

Jayati Ghosh, economista indiana e voz proeminente do Sul Global, é ainda mais incisiva: a globalização serviu ao capital financeiro e aprofundou as desigualdades estruturais entre países e dentro deles. Segundo ela, o atual momento pode representar uma chance para a construção de alternativas mais justas — mas o risco de um novo imperialismo tecnológico e de exclusão aumentada também estão no horizonte.

Já os economistas brasileiros Carlos Medeiros e Gabriel Porcile chamam atenção para a forma desigual como os países periféricos foram integrados às cadeias globais de valor. Em vez de convergirem com as economias centrais, especializaram-se em atividades de menor valor agregado e permaneceram dependentes tecnologicamente. Para eles, a atual fragmentação é uma oportunidade para promover mudança estrutural, reindustrialização e desenvolvimento com inclusão, desde que acompanhada de políticas estatais ativas e integração regional.

2. Risco ou oportunidade? - Embora esses economistas apresentem diagnósticos diversos sobre as origens da refragmentação — seja pelas guerras comerciais, pela pandemia ou pela transição energética —, há uma visão compartilhada de que este é um momento ambíguo: a fragmentação da economia global não é, por si só, uma solução, mas pode abrir espaço para políticas que antes estavam interditadas pela ortodoxia neoliberal.

Rodrik, por exemplo, alerta para os perigos de um mundo com blocos comerciais rivais e defende um equilíbrio entre segurança nacional e cooperação internacional. Ghosh, por sua vez, insiste que o Sul Global só poderá aproveitar esse momento se conseguir avançar em novas formas de financiamento, regulação e solidariedade internacional, fora das amarras do atual sistema multilateral dominado pelas potências centrais.

Chang vê na fragmentação uma chance de retomar a política industrial e fortalecer o papel do Estado, enquanto Porcile propõe um multilateralismo progressista, focado na redução de assimetrias tecnológicas e produtivas, especialmente na América Latina. Para Medeiros, trata-se de uma “janela geopolítica” que pode ser usada para fortalecer a soberania produtiva e monetária dos países em desenvolvimento.

3. O papel do Estado e da cooperação Sul-Sul - O papel do Estado na economia é um ponto central de convergência entre esses autores. Após décadas de pregação do mercado como solução universal, volta ao centro da agenda a necessidade de planejamento estatal, política industrial, ciência e tecnologia públicas e sistemas de proteção social robustos.

Além disso, cresce o reconhecimento da importância de novas formas de cooperação Sul-Sul e de integração regional. Se a fragmentação ameaça aprofundar desigualdades, ela também pode permitir que os países periféricos se articulem em novos marcos institucionais — seja por meio de bancos de desenvolvimento regionais, políticas industriais conjuntas ou plataformas tecnológicas compartilhadas.

4. Em busca de alternativas - A refragmentação da economia global marca o fim de uma era e o início de outra — ainda indefinida. Para os economistas de esquerda e do Sul Global, essa transição não deve ser lamentada, mas disputada. Em vez de uma simples substituição da hegemonia americana pela chinesa, ou da globalização liberal por um protecionismo ad hoc, o momento atual pode ser usado para construir um novo pacto internacional mais justo, sustentável e democrático.

Como conclui Jayati Ghosh, “o mundo pós-globalização ainda está em disputa — e o Sul Global precisa participar ativamente da sua construção, com ousadia, solidariedade e inovação institucional”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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