Quando o mundo precisa da ONU, ela falha: o desafio das guerras nucleares no século XXI
A pergunta não é se a ONU deve mudar. Mas se o mundo pode continuar sem que ela mude
Três guerras, três ameaças nucleares, três provas dolorosas da inoperância do sistema internacional fundado para evitar justamente esse tipo de tragédia. A invasão russa à Ucrânia, a escalada militar entre Israel e Hamas após os atentados de 7 de outubro de 2024, e agora, mais recentemente, a ofensiva aérea lançada por Israel contra alvos estratégicos do Irã, ocorrida em 13 de junho de 2025, colocaram em xeque não apenas o equilíbrio geopolítico do planeta, mas a própria credibilidade da Organização das Nações Unidas. Criada em 1945 para impedir a repetição dos horrores da Segunda Guerra Mundial, a ONU tornou-se, aos olhos de muitos analistas, uma espectadora constrangida da desordem global que deveria conter.
A impotência da ONU não é um fenômeno novo, mas o agravamento simultâneo de três conflitos envolvendo potências nucleares deu à sua paralisia um caráter de urgência incontornável.
O que está em crise não é apenas o funcionamento do Conselho de Segurança, frequentemente travado pelo direito de veto dos cinco membros permanentes, mas a própria ideia de um multilateralismo funcional, baseado em regras claras e no primado da paz. Em cada um desses conflitos, a ONU tentou intervir. E falhou.
Na Ucrânia, desde a anexação da Crimeia em 2014 e com intensidade renovada após a invasão de fevereiro de 2022, a Rússia bloqueou com seu veto dezenas de tentativas de sanção ou condenação. No conflito entre Israel e Hamas, os Estados Unidos barraram repetidas resoluções pedindo cessar-fogo ou investigação de possíveis crimes de guerra.
E na mais nova e grave escalada entre Israel e Irã, uma reunião emergencial do Conselho de Segurança foi convocada, mas não produziu nem mesmo uma declaração conjunta.
Fato: a diplomacia internacional, reduzida à retórica, revelou-se incapaz de acompanhar o ritmo vertiginoso dos mísseis.
Esse estado de inação estrutural não é acidental. Ele decorre de uma arquitetura institucional ancorada num mundo que já não existe.
A fundação da ONU foi uma resposta à barbárie. Os líderes vitoriosos da Segunda Guerra Mundial — especialmente Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética — construíram uma estrutura multilateral centrada na ideia de que o diálogo e o equilíbrio de poder poderiam manter a paz.
O Conselho de Segurança, com seus cinco membros permanentes dotados de poder de veto, foi concebido para garantir que nenhuma decisão de peso fosse tomada sem o aval das grandes potências militares. Era uma fórmula de consenso forçado. Mas era também um pacto com o passado.
O mundo de 1945 tinha pouco mais de cinquenta países soberanos. Governos nacionais eram os únicos atores relevantes. O conceito de “segurança internacional” estava diretamente ligado à contenção entre Estados.
Hoje, o cenário é outro.
São mais de 190 nações reconhecidas, além de blocos regionais, organizações civis transnacionais, corporações globais e redes informais de poder com alcance planetário.
A proliferação de interesses — e de ameaças — transformou a paisagem geopolítica num mosaico de tensões impossíveis de conter com os mecanismos de sete décadas atrás.
Apesar dessas mudanças profundas, a ONU preserva sua estrutura quase intacta. Sua Assembleia Geral continua com poderes limitados, suas resoluções não têm força de lei, e o Conselho de Segurança segue refém do veto.
O que nos causa perplexidade, para não dizer assombroso espanto, é que a cada tentativa de reforma estrutural, os interesses nacionais dos próprios membros permanentes minam qualquer avanço real. As críticas mais duras apontam justamente essa paralisia autoimposta.
A ONU, dizem muitos analistas, fracassa não porque tenta e falha, mas porque não está desenhada para funcionar no mundo que temos.
O texto “Defining a Role for the UN Within the Emerging International Order” que integra o mais lúcido e abrangente estudo sobre o papel e a necessidade de reengenharia da ONU: Turning Point for All Nations, traduzido em português corrente “momento decisivo para todas as nações”, foi publicado pela Comunidade Internacional Bahá’í em 1 de outubro de 1995, e dentro de poucos meses se terão transcorridos 30 anos desde que foi tornado acessível ao escrutínio das lideranças mundiais e da humanidade em geral, traduzido que foi para diversos idiomas.
Estas análises e reflexões capazes de ensejar uma Organização das Nações Unidas nos moldes que o mundo precisa é uma robusta e coerente proposta de reforma institucional, porque trata desse impasse com uma lente evolucionária. Pois bem, em vez de propor o desmonte da ONU, os autores sugerem um caminho de reengenharia gradual, baseado na adaptação das funções legislativa e executiva da organização ao novo cenário global.
A lógica não é destruir para recomeçar, mas redesenhar por dentro — com coerência, continuidade e foco estratégico.
Nesse espírito, uma das propostas centrais é a revitalização da Assembleia Geral.
O texto critica o peso excessivo da soberania estatal, que confere a regimes autoritários o mesmo poder formal que democracias consolidadas.
Defende que, ao menos em domínios específicos — como segurança climática, genocídio, armas de destruição em massa — as resoluções da Assembleia passem a ter força de lei, desde que aprovadas por maioria qualificada e com salvaguardas jurídicas para sua aplicação.
Seria uma forma de contornar o veto sem abolir a soberania.
Outra sugestão crucial é o desenvolvimento de uma função executiva internacional mais eficaz — algo que vá além do simbolismo das cúpulas diplomáticas ou da retórica dos pronunciamentos solenes.
Atualmente, a responsabilidade executiva recai majoritariamente sobre o Conselho de Segurança e, em menor grau, sobre o Secretariado. Mas ambos enfrentam limitações severas. O Conselho não consegue agir com firmeza por causa do veto. O Secretariado está sufocado pelas agendas concorrentes dos próprios Estados-membros, que impõem prioridades conflitantes e esvaziam sua autonomia.
No núcleo dessa proposta está a criação de uma força internacional permanente, leal às Nações Unidas e desvinculada das forças armadas nacionais. Essa força seria comandada pelo Secretário-Geral, com autoridade do Conselho, mas supervisionada e financiada pela Assembleia Geral. Sua função: implementar decisões legítimas da ONU, garantir acesso humanitário, proteger populações civis e conter conflitos antes que se tornem guerras abertas.
A ideia não é nova. Desde o início dos anos 1990, após os desastres em Ruanda e na Bósnia, discute-se a necessidade de uma força multilateral com capacidade real de intervenção. Mas as experiências até agora têm sido frustrantes: as missões de paz da ONU, como a UNIFIL no Líbano ou a MONUSCO no Congo, raramente contam com os recursos e o mandato necessários para agir.
A criação de uma força com efetividade militar — profissional, independente e bem financiada — alteraria esse cenário. Permitiria, por exemplo, conter escaladas como a atual entre Israel e Irã. Ou evitar massacres como os que ocorrem periodicamente na Síria, em Darfur ou em Gaza.
Além disso, criaria o ambiente de segurança mínimo necessário para impulsionar o desarmamento global. Afinal, os países só poderão abrir mão de arsenais se souberem que há um escudo internacional para protegê-los.
Outra proposta ambiciosa do texto diz respeito ao poder de veto.
Ele foi concebido, originalmente, como salvaguarda contra decisões hostis a uma das grandes potências. Mas tornou-se, na prática, um mecanismo de chantagem geopolítica. Desde o início da Guerra Fria, o veto tem sido usado com frequência para proteger aliados estratégicos, impedir investigações de crimes de guerra e travar resoluções de cessar-fogo.
O resultado?
Uma paralisia que custa vidas.
O documento propõe uma transição cuidadosa: não se trata de abolir o veto de imediato, o que seria politicamente impossível. Mas sim de restringir seu uso a situações realmente vitais para a segurança nacional do país que o exerce. Em outras palavras: impedir que o veto seja usado para blindar aliados de sanções por violações sistemáticas do direito internacional. Essa mudança, embora sutil, teria impacto profundo.
Como essas propostas poderiam operar na prática diante dos três conflitos em curso?
Tomemos o caso da Ucrânia. Desde a invasão em 2022, a Assembleia Geral tem sido a principal instância a aprovar resoluções simbólicas de condenação à Rússia. Nenhuma delas, no entanto, teve efeito concreto. Com a adoção de uma reforma que conferisse força legal limitada às resoluções da Assembleia em temas de guerra e paz, poder-se-ia aplicar sanções internacionais automáticas, mobilizar uma força humanitária, e deter o avanço militar de forma preventiva. O veto russo, nesse cenário, deixaria de ser um escudo absoluto contra consequências.
No caso de Israel e Hamas, a mudança mais urgente seria justamente o controle do uso abusivo do veto. Em diversas ocasiões, os Estados Unidos vetaram resoluções que pediam o fim dos bombardeios sobre civis palestinos, a entrada de ajuda humanitária ou investigações sobre crimes de guerra.
Com uma ONU reconfigurada, esse tipo de bloqueio seria submetido a um escrutínio maior — e poderia ser anulado, por exemplo, por maioria qualificada dos demais membros do Conselho. Isso não implicaria hostilidade contra Washington, mas reafirmação de um princípio: ninguém está acima do direito internacional.
Já na escalada entre Israel e Irã, iniciada há menos de 48 horas, as limitações da ONU beiram o surrealismo. Apesar de dezenas de mortos, alertas da AIEA sobre riscos nucleares e apelos por contenção de países europeus, o Conselho de Segurança mal conseguiu emitir uma nota oficial.
Uma força da ONU com presença prévia na região poderia ter monitorado atividades suspeitas, pressionado por uma zona de exclusão aérea e contribuído para desescalar o conflito antes do primeiro ataque.
Esses são apenas exemplos. Mas mostram o que está em jogo: a diferença entre uma organização que observa catástrofes e uma que atua para preveni-las.
Naturalmente, qualquer reforma dessa envergadura enfrentará resistência. Os membros permanentes dificilmente abrirão mão voluntariamente de seus privilégios históricos. Mas a pressão internacional — vinda não apenas de Estados-membros, mas da sociedade civil, das universidades, das redes de cooperação internacional — tem crescido. E pode encontrar nas crises atuais o catalisador necessário para mudanças que pareciam impossíveis.
É necessário aprofundarmos mais.
O mundo que deu origem à ONU em 1945 já não existe. A Guerra Fria acabou, as alianças mudaram, a tecnologia militar tornou-se exponencial. E as ameaças — do colapso climático às pandemias, do terrorismo transnacional à guerra cibernética — já não respeitam fronteiras. Mas os mecanismos de governança global seguem presos a um tempo que passou.
É nesse abismo entre realidade e estrutura que florescem os conflitos contemporâneos.
Enquanto a ONU não se reinventar, continuará sendo aquilo que os críticos há décadas denunciam: uma instituição incapaz de impedir guerras, salvar civis ou impor a paz. Uma organização fundada para unir a humanidade diante de seus piores medos, hoje transformada num espelho das divisões que pretende superar.
Mas há alternativas:
- Reformar a Assembleia Geral.
- Redesenhar o Conselho de Segurança.
- Criar uma força internacional com autoridade real.
- Restringir o uso do veto.
- Financiar a ONU de forma autônoma.
- Implementar um idioma auxiliar para facilitar a cooperação.
- Explorar a viabilidade de uma moeda internacional.
Todas essas propostas têm em comum? É que todas elas já existem — e esperam apenas coragem política para serem postas em ação.
No fim, a pergunta não é se a ONU deve mudar. Mas se o mundo pode continuar sem que ela mude.
Se falhar novamente, como em Gaza, em Kiev, em Teerã, o preço não será apenas diplomático. Será humano. E talvez irreversível.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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