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Sara Goes

Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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Nordeste, big techs e a batalha por corações e mentes

Bolsonaro volta ao Nordeste que desprezou, agora amparado por big techs e aliados. Lula inaugura obras no sertão. Disputa simbólica passa por Fortaleza

(Foto: Reprodução/Site do PL)

No início da tarde do dia 29 de maio, desembarcou em Fortaleza o ex-presidente, cercado por um grupo majoritariamente masculino, com sotaques diversos das várias regiões do Nordeste. O pequeno caos histérico que se formou no aeroporto incomodou os funcionários e quem desembarcava naquele momento. Fortaleza e consolidou como símbolo estratégico da disputa nacional entre dois projetos de país. A cidade foi escolhida pelo PL para sediar o 2º Seminário Nacional de Comunicação do partido, evento que marca o retorno público de Jair Bolsonaro após uma cirurgia e reúne representantes das big techs Google e Meta, que oferecem suporte técnico à militância digital bolsonarista. O gesto consolida um eixo político-informacional que articula plataformas digitais, estratégia eleitoral e o avanço da extrema direita.

Terral - Fortaleza não foi escolhida ao acaso para sediar o 2º Seminário Nacional de Comunicação do PL. A capital cearense, onde a extrema direita perdeu por margem mínima nas últimas eleições municipais, tornou-se uma espécie de desafio ao laboratório político do bolsonarismo. Evandro Leitão (PT) venceu André Fernandes (PL) por uma diferença de apenas 10.838 votos, a disputa mais acirrada entre as capitais brasileiras naquele pleito. A cidade concentrou em poucos bairros ação direta das grandes igrejas evangélicas e de redes de influenciadores reacionários que operam sob um discurso de guerra moral, humoristas com linguagem jovem, memes de TikTok e slogans vazios com alta circulação. 

A movimentação recente do ex-prefeito Roberto Cláudio também compõe esse tabuleiro. Ao anunciar sua saída do PDT, após encontros discretos com figuras do PL e do União Brasil, ele sinaliza uma aproximação com setores que operam a desconstrução da hegemonia petista no Ceará. Almoços entre bolsonaristas e pedetistas, reuniões com parlamentares da oposição e elogios trocados entre André Fernandes e Ciro Gomes mostram que há, em curso, uma tentativa coordenada de construção de uma frente ampla de extrema direita para 2026. A desfiliação de Roberto Cláudio não se deu por acaso, mas em meio a conversas sobre alianças eleitorais e rearranjos que envolvem até a possibilidade de disputar o governo do estado ou o Senado com apoio do campo conservador.

O Seminário do PL - Como discorre Reynaldo Aragon, o avanço da extrema direita no Brasil apoia-se em um tripé bem articulado, big techs, bíblias e Bannon. Eduardo Bolsonaro, figura central dessa engrenagem, integra "O Movimento", grupo internacional fundado por Steve Bannon, e atua diretamente na estruturação da nova direita no país, organizando eventos como o CPAC e articulando apoio com plataformas como Gettr, vinculada ao ex-assessor de Donald Trump, Jason Miller.

O seminário de comunicação do PL ocorre no Centro de Eventos do Ceará, com a presença de parlamentares locais e nacionais, e da ala jovem e midiática da extrema direita, incluindo Carlos Bolsonaro, Carmelo Neto e André Fernandes. Mais do que reunir apoiadores, o objetivo é treinar quadros e sistematizar métodos, com foco no uso de inteligência artificial, gestão de redes sociais, produção de conteúdo e análise de dados. Uma “Cabine de Inteligência Artificial” foi montada no local para oferecer treinamentos personalizados sobre como aplicar essas tecnologias à comunicação política. A presença oficial de representantes de empresas como Google e Meta nesse espaço, promovendo oficinas práticas sobre criação de conteúdo, uso de ferramentas preditivas e novas linguagens como os Reels, demonstra o grau de conivência, ou no mínimo neutralidade estratégica, das plataformas com esse projeto de radicalização da comunicação.

O evento ocorre em um momento politicamente sensível, o avanço de investigações sobre a atuação de Eduardo Bolsonaro contra o STF nos EUA e a iminência de uma nova proposta do governo federal para regulamentar as redes sociais. Essa conjunção de fatores transforma o seminário em uma declaração de método e poder, na qual o PL sinaliza à sua base e aos seus aliados internacionais que está investindo na profissionalização de sua estrutura digital para travar as próximas batalhas eleitorais e judiciais.

Nordeste em disputa - É nesse exato contraponto que Lula reposiciona o Nordeste não como vitrine de discurso, mas como espaço de realização concreta de um projeto nacional. Nesta semana, o presidente Lula resgatou memórias pessoais e decisões políticas que conectam sua trajetória com duas das maiores obras de integração hídrica do país. Em meio à agenda que mobilizou o governo federal para o sertão nordestino, Lula comentou com emoção as entregas realizadas no âmbito do projeto Caminho das Águas, que percorre Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. A obra, com 74,83% de execução, deverá ser finalizada até outubro de 2026, com investimentos de R$ 1,45 bilhão. Quando concluída, levará água para cerca de 750 mil pessoas em 54 municípios da Paraíba e do Rio Grande do Norte.

“O que a gente está fazendo agora, inaugurando essas partes da transposição, é uma espera de 179 anos. Essa obra foi pensada em 1846, pelo imperador Dom Pedro. E só agora o povo do sertão está vendo a água chegar”, disse Lula, que lembrou ter sido ele próprio forçado a migrar por causa da seca, “Eu saí de Pernambuco em 1952 porque não tinha água. Fomos embora pra não morrer de fome.”

Lula celebrou a dimensão da obra e criticou a visão elitista sobre o semiárido, “O São Francisco é do Brasil. Se tem doze milhões de pessoas em áreas secas, a gente tem obrigação de levar água. O pobre quer ser engenheiro, médico, o que quiser. E isso começa com dignidade. E dignidade é água. Água é vida.”

Os dados compilados pelo jornalista Aquiles Lins, em artigo no Brasil 247, ajudam a entender a razão do investimento estratégico de Lula na região, em 2022, o Nordeste concentrou 27,2% do eleitorado nacional. Em números absolutos, foram quase 40 milhões de votos. Só entre 2018 e 2022, a população nordestina cresceu 4,3%, contra 0,3% no Sudeste. Ao mesmo tempo, a renda per capita da região cresceu 27% em 10 anos. O Nordeste não é apenas um reduto simbólico da esquerda, mas um território em expansão econômica, demográfica e política, e, portanto, em disputa.

A caricatura do Nordeste como uma região dependente de carros-pipa, resignada a viver sob a sombra das desigualdades estruturais, muitas vezes ignora a riqueza cultural, a força coletiva e a consciência de classe de seu povo. Essa visão reduzida tenta perpetuar estereótipos que desumanizam e silenciam a complexidade da região, sugerindo que a sobrevivência anula a capacidade de resistência e protagonismo.

Bolsonaro odeia o Nordeste, mas precisa dele - Durante as eleições de 2022, Bolsonaro delegou a Michelle e Damares o papel de percorrer o Nordeste, não construiu alianças sólidas e ainda se associou à operação da PRF que paralisou ônibus no dia da votação. Mesmo após tantas falas racistas contra a região, essa foi a imagem mais patente de seu asco pelo Nordeste.

Bolsonaro odeia o Nordeste porque ele é o símbolo vivo da resistência a seu projeto autoritário. E, paradoxalmente, escolheu a região como refúgio porque sabe que é nela que encontrará uma resposta moral, mesmo que negativa, à sua trajetória. O Nordeste rejeitou Bolsonaro nas urnas, mas é nele que o ex-presidente agora tenta construir uma narrativa redentora. Ele ignora que a resistência nordestina não é apenas política, ela é cultural, histórica e profundamente enraizada em sua identidade.

Essa resistência transcende partidos e ideologias. Está presente na capacidade do Nordeste de articular políticas públicas regionais, como demonstrado pelo Consórcio Nordeste durante a pandemia. Está nos jovens que lideram o Enem e ocupam universidades de elite, nas comunidades que limpam o petróleo de suas praias "no braço" e nos pescadores que sobrevivem às adversidades com solidariedade e coragem.

Bolsonaro tentou dividir o Brasil, mas uniu o Nordeste em uma rejeição quase unânime ao seu projeto de poder. Ele não compreendeu que a força dessa região está em sua história de resistência, não em sua suposta dependência. O Nordeste existe, e resiste. Sua rejeição a Bolsonaro é mais do que política, é um grito de dignidade.

A presença simultânea de Lula no sertão e de Bolsonaro em Fortaleza, cercado por seus operadores digitais e apoiadores das big techs, revela a encruzilhada em que o Brasil se encontra, de um lado, um projeto de soberania e integração, de outro, a aliança entre o ultraconservadorismo e a infraestrutura digital privada, que transforma plataformas em trincheiras políticas.

Se o Brasil está em disputa, o Nordeste é o campo de batalha, e Fortaleza é a trincheira mais visível desse novo embate.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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