Marco Sunye, o reitor hacker que pode mudar os rumos do país
'Marco Sunye defende a soberania informacional como quem funda um novo reino', escreve a colunista Sara Goes
Marco Sunye é o reitor hacker que, como o Quaderna de A Pedra do Reino, reescreve o Brasil da margem. Do Sul revolucionário, com código e método, ele defende a soberania informacional como quem funda um novo reino
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, publicado em 1971, é uma das obras mais ambiciosas da literatura brasileira. Escrita por Ariano Suassuna ao longo de uma década, é um livro-memorial, encenado na cela de uma cadeia em Taperoá, onde o narrador, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, redige sua defesa num manuscrito exuberante, confessional, delirante e profundamente nordestino.
A trama central gira em torno do desejo de Quaderna de provar sua legitimidade como herdeiro do trono do Reino do Sertão, um reino imaginário que mistura sebastianismo, cavalaria medieval e mitologia nordestina. Ao tentar estabelecer a Pedra do Reino como marco de um novo tempo, uma utopia mística, aristocrática e sertaneja, o narrador se entrega a uma escrita labiríntica, onde o riso e a tragédia se entrelaçam. Tudo é exagerado, farsesco, encantado, mas nunca gratuito. Suassuna sabe que o exagero também é uma forma de dizer a verdade.
É nesse universo, em que o sertão é elevado ao centro do mundo, que Ariano Suassuna projeta sua visão de monarquia como forma simbólica de soberania. Para ele, “a monarquia, em princípio, é o regime que mais corresponde à psicologia do povo”. A afirmação, feita durante a ditadura militar, não era um posicionamento político, mas a revelação de uma estética da autoridade que atravessa a cultura popular brasileira. Em sua visão, a figura do rei ou do caudilho representa uma ideia encarnada, um elo entre o povo e a transcendência, um eixo de sentido num país acostumado à desordem.
Suassuna enxergava na monarquia uma possibilidade de conciliação entre tradição, nacionalismo cultural e utopia social. Não à toa, em A Pedra do Reino, a fundação de um novo império sertanejo não vem pelas mãos de tecnocratas, nem de revolucionários, mas de um poeta preso, herdeiro de sangue e delírio, que insiste em reescrever a história com tintas de sonho. A monarquia sertaneja de Suassuna é simbólica, sim, mas por isso mesmo é mais real que qualquer república que ignore a alma do povo. Porque no sertão, o trono pode ser de pedra, mas o rei sempre é de carne, palavra e memória.
Marco Sunye é o Quaderna do século XXI. Só que em vez de papel e pena, ele escreve sua epopéia com cabos, servidores, código e convicção. Como o personagem de Ariano Suassuna, ele não é fácil de rotular. Cientista da computação, reitor, hacker, professor, agitador político, Sunye navega entre a lógica e a fábula, entre a universidade e a trincheira, entre o protocolo técnico e o desafio existencial, como construir um país que não seja colônia digital?
Sua trajetória evoca o mesmo gesto de Quaderna diante do juiz, desafiar as instituições com a própria inteligência, revirar o jogo com o uso preciso da linguagem, assumir a marginalidade como método. Enquanto o Brasil entrega sua soberania informacional por meio de políticas públicas travestidas de modernização, Marco Sunye mantém a tocha acesa, articulando redes livres, defendendo a infraestrutura pública, cultivando pensamento crítico onde quase tudo virou terceirização.
O que foi interrompido após o mandato de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003 a 2008), a construção de uma política nacional de cultura digital, software livre e autonomia tecnológica, encontra em Sunye um herdeiro e, ao mesmo tempo, um recriador. Mas ele já não enfrenta apenas a indiferença. Enfrenta um governo que, sob a promessa de inovação, entrega a integridade informacional da população brasileira. O projeto Redata, apresentado como avanço, é na verdade uma nova forma de submissão, desonera big techs estrangeiras, entrega infraestrutura crítica a corporações que não prestam contas ao país e consolida uma dependência que compromete nosso futuro.
Sunye, como Quaderna, não aceita esse destino. Denuncia, com método e ironia, a lógica de colonização digital que se esconde sob o verniz de ESG, inovação e sustentabilidade. Enquanto países como China e Rússia exigem que os dados de suas populações sejam armazenados em servidores nacionais, o Brasil oferece incentivos para que empresas estrangeiras controlem nosso coração digital. Não se trata de paranoia, mas de soberania. E Sunye insiste, não basta saber onde os dados estão, é preciso saber quem os comanda. Porque quem abre mão da própria infraestrutura, abre mão do próprio destino.
Num tempo em que a política digital virou refém de influencers e a crítica foi substituída por buzzwords, Marco Sunye é um corpo estranho, como Quaderna era. E é justamente por isso que ele importa. Ele não só aponta os limites do projeto de submissão tecnológica em curso. Ele propõe outro. Um Brasil que não seja periférico, nem dependente, nem colonizado por cabos submarinos. Um país que se reconstrua do chip à nuvem, do servidor à soberania.
E talvez, se um dia nos pedirem para relatar a história da refundação informacional do Brasil, teremos que começar assim, “Eu sou Marco Antônio de Oliveira Sunye, cidadão, reitor e cabra de ciência, e o que vou contar agora é verdade verdadeira.”
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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