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Sara Goes

Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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Juliana, Gaza e o silêncio entre cliques

O que emerge não é a comparação das dores, mas a forma como aprendemos a consumi-las. A cada imagem, uma camada a menos de humanidade

(Foto: resgatejulianamarins/Instagram)

A insensibilização é lenta, mas certeira. Não chega como negação, mas como excesso. De tanto ver, deixa-se de sentir. De tanto deslizar, o dedo desaprende o toque. Juliana Marins caiu em uma trilha na Indonésia e ficou presa a 650 metros de profundidade. Durante dias, resistiu. Sua morte, a tragédia em camadas, se tornou debate público, uma mulher que ousa viajar só, o desamparo do guia, a exigência da família em envolver esforços do governo, o debate sobre sua intimidade. Me vi um pouco nela, me senti tão só. Havia algo naquele corpo imóvel, naquela espera em vão, que tocava uma solidão muito íntima, uma angústia sem plateia mesmo sob os olhos do mundo inteiro.

Do outro lado do mundo, desde outubro de 2023, crianças são soterradas em Gaza todos os dias. Seus corpos aparecem em vídeos, amontoados, cobertos de poeira, sem nome, sem história, sem voz. A não ser pelas entidades como a FEPAL, que tentam resgatar esses nomes, reconstruir essas vidas, devolver rosto aos corpinhos esfacelados. A Federação Árabe Palestina do Brasil publica diariamente identidades, datas de nascimento, rostos que ninguém quer ver. Mas a grande e velha mídia só viu o nome de Juliana, de olho nos cliques que o debate em torno dela poderia render, da aventura solitária à intimidade vasculhada, da falha logística ao apelo diplomático. Só a ela foi permitido existir como alguém. Os outros seguem como números, manchas, ruídos. Ontem ouvi uma frase da professora Ednalva Neves, da UFSM, que me cortou por dentro. O ser humano virou resíduo.

Desde minha primeira gestação, toda imagem de uma criança morta me atravessa como uma ameaça. Não é comparação, é conexão. Quando vejo aquelas mães carregando pequenos corpos embrulhados em lençóis, não consigo pensar em outra coisa senão no corpo do meu filho. A maternidade faz com que o mundo se torne mais frágil e mais real, e assistir ao genocídio com um bebê nos braços é como segurar futuro e fim ao mesmo tempo. Mas mesmo isso, aos poucos, começa a se diluir. As imagens seguem vindo, uma atrás da outra, e a dor já não encontra mais onde pousar.

A isso soma-se a insensibilização programada pelas redes, tema central nas reflexões de Reynaldo Aragon. Ele descreve como o deslizar constante de imagens sobrepostas rouba de nós o tempo do afeto, a dúvida, a angústia, o receio, o espaço onde o outro começa a existir. A ausência de hesitação e erro, peças fundamentais do vínculo humano, é substituída por gestos automáticos que eliminam o atrito emocional, esse tempo do não saber que ainda preserva a profundidade do encontro. Ele prossegue apontando que o design persuasivo das plataformas molda emoções para a produtividade e o consumo, transformando amor, tédio, raiva e desejo em funções de um sistema que quer otimizar engajamento e eliminar o incômodo da dúvida. Hesitar, parar de clicar, recusar o fluxo, é, para Aragon, um ato político e humano, uma forma de resgatar o afeto genuíno.

Vivemos numa era em que a dor virou conteúdo. E a forma como ela é exibida, com mais ou menos filtros, mais ou menos intimidade, mais ou menos repetição, define não só o quanto nos comovemos, mas o quanto continuamos a clicar. A comoção por Juliana ainda carrega algum resquício de empatia. Já o genocídio de Gaza parece ter se convertido em ruído de fundo, como se o horror reiterado tivesse gasto o poder de choque.

Não se trata de comparar tragédias, mas de reconhecer o que estamos deixando de sentir. A insensibilização não é uma falha moral individual, é uma arquitetura de saturação. Somos espectadores de um espetáculo contínuo, onde a dor precisa ser performada e a morte precisa parecer próxima para ser lamentada. O problema não é apenas que nos mostram demais, é que estamos sendo ensinados a não sentir quase nada. Soa óbvio, mas permanece urgente lembrar que desacelerar, hesitar, recusar o fluxo automático das redes não é recusa da dor ou ignorância da tragédia, é talvez a única forma que resta de preservar o humano.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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