Deus, Pátria e Algoritmo: a nova cruzada dos conservadores em crise
Estamos diante de algumas gerações de conservadores em crise, que não conseguem mais se encaixar. E, por isso, inventam mundos paralelos
Observar o Brasil à distância tem sido, nos últimos anos, um exercício constante de perplexidade. E, mais do que isso, um teste diário de sanidade diante de absurdos que se normalizaram. Como explicar a ascensão de figuras que emulam o autoritarismo com estética de culto ou de movimentos que prometem regenerar a masculinidade com jargões militares e um discurso moralista que beira a caricatura?
Enquanto o bolsonarismo se enraíza no culto a um líder tosco e autoritário, que promete ordem ao mesmo tempo em que flerta com o caos, os “legendários” surgem como uma tentativa de refundar a masculinidade dentro de uma embalagem de “alta performance”, disciplina e tradição. Mas, no fundo, são apenas faces da mesma moeda: uma tentativa desesperada de fugir de um mundo em transformação acelerada, onde as certezas de outrora já não se sustentam.
O bolsonarismo, embora enfraquecido eleitoralmente, sobrevive como espectro ideológico de uma elite ressentida e de uma parte da população fragilizada emocionalmente, em busca de amparo, ou melhor, de salvação. Seu parentesco simbólico com a nova onda dos “legendários” brasileiros, esses grupos de jovens conservadores que seguem cartilhas estéticas e comportamentais rígidas, não é coincidência. Ambos os movimentos bebem da mesma fonte: o medo do mundo real. Ambos os grupos têm ares de seita. Reúnem homens (quase sempre brancos, ou desejantes dessa branquitude simbólica) que sentem que o mundo “moderno demais” os traiu. Sentem-se deslocados num presente que exige empatia, escuta, inclusão, autocrítica. Rejeitam a fluidez contemporânea, buscando uma rigidez imaginária, como se isso os tornasse novamente donos de alguma coisa.
O curioso nos legendários é que ao invés de simplesmente se comprometerem com a tarefa honesta de serem bons maridos, pais ou simplesmente seres humanos decentes, optam por gastar pequenas fortunas em cursos de autoaperfeiçoamento, workshops de masculinidade e retiros de “virilidade estratégica”. Parece uma encenação de valores que poderiam ser simplesmente praticados sem publicidade e sem camiseta personalizada.
As musas do conservadorismo performático
Do outro lado da moeda conservadora, também há um papel específico reservado às mulheres. O fenômeno das “tradwives” (esposas tradicionais) floresce nas redes sociais como resposta direta à fluidez dos papéis de gênero contemporâneos. São mulheres que abandonam o mercado de trabalho para viver exclusivamente em função do marido e dos filhos, promovendo esse estilo de vida com filtros vintage e legendas bíblicas. A escolha individual é, muitas vezes, apresentada como missão divina ou resistência moral a um mundo “degenerado”. Mas, assim como os legendários performam uma masculinidade idealizada, essas mulheres encenam uma feminilidade arcaica, que confunde submissão com virtude e se ancora numa nostalgia construída de um passado que raramente foi bom para as mulheres.
Esse moralismo performático revela muito. Não basta ser bom. É preciso ser visto sendo bom. E, preferencialmente, dentro de uma moldura masculina, forte, hierárquica. O lema de transformar homens, famílias e comunidades soa familiar demais. “Deus, Pátria e Família” não é apenas um slogan conservador. É um eco direto de regimes autoritários do século XX. Foi o tripé ideológico do fascismo italiano sob Benito Mussolini, serviu de base ao franquismo na Espanha e ao salazarismo em Portugal. Também inspirou o integralismo brasileiro de Plínio Salgado nos anos 1930, uma tentativa explícita de importar o modelo fascista para o Brasil, com camisas verdes, saudação romana e culto a um chefe supremo. Décadas depois, a ditadura militar brasileira (1964–1985) retomaria essa mesma retórica, associando valores “tradicionais” à repressão e à censura. Quando hoje se fala em “salvar a família” ou “resgatar a ordem”, sob o pretexto de moralidade, é preciso reconhecer a origem desses projetos históricos tão autoritários quanto excludentes e violentos.
E o que une legendários e bolsonaristas, para além da estética e do conservadorismo, é um anseio profundo por pertencimento. São pessoas que se sentem expulsas de um mundo que não entendem mais. As senhoras e senhores idosos que ficaram em frente aos quartéis, tentam resgatar um passado que nunca foi tão glorioso assim. Os mais jovens, se recusam a aceitar o presente e se refugiam em fantasias de honra e disciplina, como se estivessem numa simulação da Roma imperial. No final todos buscam algo a que se agarrar: uma tábua de salvação existencial. Só que já vimos esse filme e nessa tábua não cabe todo mundo.
Um movimento de estética (bastante) duvidosa
O uniforme dos legendários é outro capítulo à parte. A estética é visualmente duvidosa. Não fica claro se a inspiração vem dos funcionários das plataformas da Petrobras, detentos de alguma penitenciária estado-unidense, apoiadores do Partido Novo ou apenas jovens fantasiados de desbravadores da masculinidade. Seja lá qual for, o modelo de obediência coletiva, unida a frases prontas sobre resgate moral, os aproxima perigosamente do fanatismo.
Há também, é claro, o elemento econômico. Enquanto os legendários “gourmetizam” a moralidade em pacotes de cursos caros, o bolsonarismo cooptou multidões pobres com a promessa de um pertencimento simbólico. Ninguém seria mais “do povo” do que o ex-capitão. Era o delírio coletivo transformado em simplicidade: a arma, o nome de Deus, o aplauso fácil. Para ambos os públicos, é a promessa de importância que conta, ainda que ilusória e inalcançável.
Nem Jesus escapa desse enredo. Cooptado e ressignificado, ele é apresentado por esses grupos como um símbolo de ordem e autoridade, esvaziado de sua radicalidade. Mas o Jesus histórico caminhava ao lado de prostitutas, pobres e leprosos; pregava o amor, o perdão e a humildade. Muito provavelmente, seria o primeiro a ser marginalizado por esses mesmos que hoje clamam por seu nome. Não vestiria o uniforme. Não discursaria com a virilidade esperada. E não seria aceito como “modelo de homem” por grupos que valorizam força acima de compaixão, obediência acima de escuta, hierarquia acima de igualdade. Ainda assim, lhe deram a honra de ser o legionário número 1, uma ironia tão involuntária quanto reveladora.
Um futuro nada promissor
Estamos diante de algumas gerações (ou melhor, de diversas faixas etárias) de conservadores em crise, que não conseguem mais se encaixar. E, por isso, inventam mundos paralelos: bolhas onde a realidade é filtrada, onde tudo que os confronta a volte a realidade é descartado como “ideologia” ou “degeneração”. É um retorno simbólico ao útero do autoritarismo, onde não se pensa, apenas se obedece. Mas a verdade é que o mundo que eles idealizam não existe mais. E talvez nunca tenha existido da forma como imaginam.
A tentativa de retomá-lo à força, via estética militarizada, discursos agressivos e negação das diferenças, está fadada ao fracasso. Porque a história não anda para trás, mesmo que alguns insistam em tentar. E, no entanto, para os mais atentos surgem ainda mais perguntas: o que mais eles ainda podem inventar? Até onde vai essa ânsia de controlar o incontrolável, de restaurar o que já se perdeu, de reencenar o passado como se fosse futuro? É preciso estar atento e crítico, pois em se tratando de Brasil sempre pode aparecer algo pior.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: