Bandung 70 Anos: a aurora do Sul Global e a luta por um novo mundo
Setenta anos depois, Bandung permanece como um farol para os povos do mundo. Ideais de soberania, cooperação e justiça continuam a inspirar a luta dos povos
Por José Reinaldo Carvalho - Por ocasião dos 70 anos da Conferência de Bandung, realizada de 18 a 24 de abril de 1955, cabe rememorar e celebrar um dos acontecimentos mais importantes das relações internacionais do século 20. Realizada na cidade de Bandung, na Indonésia, a conferência reuniu representantes de 29 países da Ásia e da África recém-libertados e em vias de libertação do colonialismo, somando mais da metade da população mundial. Este evento não foi apenas um marco histórico da luta anticolonial e anti-imperialista, mas também o nascimento do que viria a se chamar de Terceiro Mundo e, mais recentemente, Sul Global. Sete décadas depois, as ideias lançadas em Bandung permanecem vivas e mais atuais do que nunca.
Na segunda metade do século XX, o mundo ainda se reerguia das ruínas da Segunda Guerra Mundial. No cenário da chamada Guerra Fria, entre o imperialismo estadunidense e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas os povos da Ásia e da África recém-independentes e em vias de conquistar sua independência buscavam afirmar sua soberania, autonomia política e identidade no cenário internacional.
A Conferência de Bandung respondeu a essa conjuntura com um grito coletivo de independência, dignidade e cooperação. Não se tratava apenas de rejeitar o colonialismo, mas de propor uma nova forma de inserção dos povos do Sul no sistema internacional.
Os líderes de Bandung: a vanguarda da descolonização
A conferência foi convocada por cinco países asiáticos — Indonésia, Índia, Paquistão, Birmânia (atual Mianmar) e Ceilão (atual Sri Lanka) —, mas sua importância se ampliou pelo peso dos líderes presentes. Entre eles, destacaram-se:
Jawaharlal Nehru (Índia), cuja diplomacia pacífica e visão de não alinhamento inspiraram grande parte da agenda da conferência;
Sukarno (Indonésia), anfitrião carismático que viu em Bandung a possibilidade de unificar os povos do Sul contra o domínio imperialista;
Gamal Abdel Nasser (Egito), líder da revolução árabe, defensor do pan-arabismo e da soberania dos países africanos;
Zhou Enlai (China), representante da recém-fundada República Popular, conquistada pela via revolucionária, sob a direção do Partido Comunista da China, já em construção do socialismo. Ele apresentou uma visão original de coexistência pacífica, que se tornou modelo de relações internacionais de cooperação e encontro de civilizações.
Kwame Nkrumah (Gana), uma das grandes influências ideológicas da época, simbolizando a luta dos povos africanos por libertação nacional.
Esses e outros lideres marcaram Bandung como um fórum plural, anticolonial e solidário, em que diferentes sistemas políticos e culturais encontraram unidade em torno da autodeterminação.
Um programa para a paz e a justiça
O documento final da conferência, conhecido como os Dez Princípios de Bandung, propôs um novo código de conduta internacional, baseado em:
Respeito aos direitos fundamentais do ser humano;
Respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações;
Reconhecimento da igualdade de todas as raças e nações;
Abstenção de intervenções e ingerências nos assuntos internos;
Resolução pacífica de conflitos;
Rejeição da ameaça ou uso da força;
Promoção do interesse comum e da cooperação mútua;
Respeito à justiça e às obrigações internacionais;
Apoio às lutas de libertação nacional;
Cooperação econômica e cultural entre os países do Sul.
Esses princípios constituíam uma crítica direta à ordem mundial dominada pelo imperialismo. Bandung inaugurava um novo estilo de diplomacia não subordinado, não ocidental, solidário e cooperativo.
As consequências imediatas: O Movimento dos Não Alinhados e o Terceiro Mundo
A partir de Bandung, consolidou-se um processo que desembocaria no Movimento dos Países Não Alinhados, formalizado em 1961 na Conferência de Belgrado. Este movimento buscava garantir uma posição independente no cenário mundial e afirmava o direito dos países do Sul a seguir seu próprio caminho de desenvolvimento.
A ideia do Terceiro Mundo - não como um termo depreciativo, mas como uma via de emancipação - ganhou corpo e força. Muitos líderes da época se tornaram dirigentes revolucionários em suas regiões, promovendo reformas agrárias, industrialização nacional, alianças regionais e apoio ativo aos movimentos de libertação na África, Ásia e América Latina.
O legado histórico e a emergência atual do Sul Global
Setenta anos depois, as sementes lançadas em Bandung germinam em novos solos. O Sul Global - formado hoje por países da América Latina e Caribe, África, Ásia e Eurásia - ganha protagonismo nas disputas internacionais. O fortalecimento de países como China, Índia, Brasil, Rússia, África do Sul, Indonésia, Cuba, Vietnã, Irã, entre outros, expressa essa reconfiguração.
O mundo que emerge é cada vez mais multipolar, com blocos como os BRICS, a CELAC, a União Africana e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) defendendo o multilateralismo, a reforma das instituições internacionais e a criação de mecanismos alternativos de cooperação.
O espírito de Bandung reaparece, por exemplo, na defesa da paz diante dos conflitos na Ucrânia, do genocídio perpetrado por Israel na Palestina; na exigência de uma nova arquitetura financeira internacional, com instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento e iniciativas de comércio em moedas locais; e na reafirmação do direito de cada país a seu próprio modelo político e econômico.
A luta pela reconfiguração econômica e política do mundo envolve o empenho por um novo ordenamento internacional, luta que sempre se desenvolveu desde a histórica Conferência de Bandung e é retomada hoje sob outras formas. Tais lutas são legados diretos daquele evento histórico. Bandeiras como a soberania sobre os recursos naturais; a suspensão das dívidas ilegítimas; a transferência de tecnologias; o fim dos bloqueios e sanções unilaterais impostos por potências imperialistas, a democratização dos organismos internacionais, incluindo a reforma da ONU, o soerguimento de nova arquitetura financeira internacional, bandeiras são fundamentais para romper a dependência econômica e política que ainda submete grande parte do Sul Global aos interesses dos potentados internacionais.
Bandung foi e continua sendo uma bandeira pela paz mundial. Em contraste com as alianças militares agressivas e com as intervenções neocoloniais, os países de Bandung defenderam o diálogo, o respeito à soberania e a cooperação entre os povos.
A reconfiguração internacional em curso, com a ascensão do Sul Global, não ameaça a paz — ao contrário, é uma condição para ela. Um mundo multipolar, baseado na igualdade entre as nações, na cooperação solidária e no desenvolvimento compartilhado, é a antítese do mundo unipolar, dominado pela força bruta e pela hegemonia imperialista.
Setenta anos depois, Bandung permanece como um farol para os povos do mundo. Seus ideais de soberania, cooperação e justiça continuam a inspirar governos, movimentos populares, diplomatas e intelectuais comprometidos com um mundo mais justo.
Celebrar Bandung é afirmar que a luta por um novo mundo não acabou. É recordar que a emancipação dos povos não foi um ponto de chegada, mas o início de uma longa caminhada. É renovar o compromisso com a construção de um sistema internacional democrático, pacífico, multipolar e solidário, em que os povos do Sul não sejam apenas objeto das decisões globais, mas protagonistas de seu destino.
Bandung vive. E com ela, a esperança de um mundo liberto da dominação imperialista, da miséria e da guerra.
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