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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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A compressão da classe média

A cientista social Ludmila Abílio argumenta por um “espremimento” da classe média

Moedas de real (Foto: REUTERS/Bruno Domingos)

Alguns estudos são tão claros que mereceriam ganhar um prêmio. Como no Brasil temos pouco respeito pela ciência e pelos cientistas (a começar porque nem existe a profissão de “cientista” no Brasil), algumas coisas ficam escondidas. Em 2011 a Cientista Social da UNICAMP Ludmila Abílio lançou uma análise chamada “A nova classe média vai ao paraíso?” e ali ela argumenta por um “espremimento” da classe média entre o meritório processo de retirada das classes baixas da fome e a manutenção dos privilégios econômicos para grupos organizados (como o mercado financeiro e o agronegócio). Neste estudo, Ludmila menciona claramente os “motoristas de veículos responsáveis por entrega de produtos” que, mais tarde, seriam capturados pelas “plataformas” e virariam os “motoristas de aplicativos". A autora menciona a compressão sobre toda classe média e as tentativas de sobrevivência no aumento da auto-exploração e busca por trabalhos para “compor renda”, que mostram um empobrecimento geral destes grupos.

Marc Morgan, em 2017, baseando-se em dados da equipe do Thomas Piketty adensou esse argumento num estudo chamado “Extreme and Persistent Inequality” em que afirma que durante os governos Lula 1 e Lula 2 “a classe média “custeou” a ascensão dos mais pobres”, enquanto os mais ricos mantiveram e até aumentaram a sua participação na renda nacional.

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Principais achados do estudo de Marc Morgan


Esses dados são importantes por si só, mas tremendamente reveladores quando se sabe que o principal grupo social que é mobilizado e apoia o fascismo é exatamente a classe média urbana. Desde a experiência italiana com Mussolini, até o movimento MAGA (Make América Great Again) de Donald Trump, é a classe média que opera, fortalece e suporta os governos que atacam a democracia. O sentimento de abandono que experimenta a classe média que não se sente representada por sindicatos ou por partidos de esquerda, não tem um parlamento comprado eleitoralmente (como o agro ou o mercado financeiro) e não tem proteções institucionais como o judiciário brasileiro ou os militares brasileiros, é o combustível mais claro das manifestações de 2013, do golpe de 2016, da Lava a Jato que ilegalmente prendeu Lula em 2018 e da eleição de Bolsonaro.

Se, entre 2001 e 2015 a classe média foi efetivamente deslocada da apropriação da renda nacional que historicamente tinha, simbolicamente – com a velocidade de comunicação das redes – esse efeito é potencializado e acabam desaguando nos enormes números de visualizações de vídeos da extrema direita.

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Evolução da participação na renda nacional


Ocorre que nos últimos 10 dias, o governo Lula 3, tomou uma série de decisões que recolocam a classe média no colo do bolsonarismo, e oferecem um perigo imediato de desestabilização política, antes mesmo da eleição de 2016 que entra linha de risco também:

  1. Primeiro, o ministério da economia informou que reajustar a tabela do IR (que está sem reajuste pela inflação, desde 1996) custaria cerca de 100 bilhões de reais que “o país não pode fazer isso”. Essa malfadada declaração, juntamente com o esforço de cumprimento da promessa de campanha do presidente Lula, retoma o mesmo efeito citado acima. A classe média não apenas não tem uma diminuição de sua carga, como efetivamente vê outros setores recebendo “vantagens”.
  2. Da mesma forma, a Isenção das contas de luz de quase 60 milhões de pessoas (pouco mais de ¼ da população), anunciada há dois dias pelo presidente precisa ser entendida no contexto de crescente dificuldade de implantação da energia solar. O governo Lula aceitou a pressão das empresas de distribuição de energia e tem dificultado de todas as formas o acesso à energia solar. Não apenas decisões do governos federal, mas os governos estaduais também proíbem, restringem ou até tornam ilegal a geração de energia solar. Ao mesmo tempo, as indústrias recebem abatimento de até 90% no valor do kilowatt/hora. Não precisa fazer conta para ver onde vai recair todo esse custo. Precisa apenas assistir a um dos milhões de vídeos que a extrema direita produziu nas últimas 96 horas sobre o assunto.
  3. Antes disso, havia a clássica discussão sobre os juros que chega – com o presidente do Banco Central indicado pelo governo Lula a quase 10% de juro real ao ano, e as taxas de valores cobrados por empréstimos e cartão de crédito atingem níveis maiores do que na época do bolsonarismo. Mesmo com a nova regra, de 2024 que limita o crescimento da dívida, a taxa de juros que impacta na classe média, segue subindo. Isso repica na diminuição das compras em varejo e no fato de que essa classe média não consegue mais ser consumidora de bens duráveis.
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Taxas de juros do cartão de crédito rotativo

4. Então chegamos na confusão das últimas 48 horas. O anúncio do bloqueio do orçamento federal feito juntamente com o aumento do IOF colocou fogo na já complexa e desgastada relação do governo com a classe média. E, como era de se esperar, a extrema direita está aproveitando muito a falta de tato, planejamento, comunicação e cuidado nestes anúncios. Tanto o anúncio dos cortes – para se adaptar ao autoimposto “novo arcabouço fiscal”, quanto o aumento de imposto do IOF atacam diretamente e/ou simbolicamente a classe média. Mesmo que se argumente, com razão, que o IOF tende a pesar sobre atores com maior movimentação financeira, o efeito imediato é no varejo, nas viagens, nas compras internacionais via cartão de crédito e em alguns outros pontos que são o dia a dia da classe média brasileira que já vive em um país que abriu mão de produzir bens industrializados com alguma tecnologia para proteger o agronegócio.

Diante desse panorama, não adianta reclamar da “comunicação”. Com as taxas de juros para a população chegando a 430% ao ano, o litro da gasolina atingindo o valor de 1 dólar e o pãozinho francês custando quase 1 real cada unidade não tem comunicação e nem capital político que aguente. O presidente Lula está sozinho num deserto de ministros que lhe são um peso e não um suporte. No fundo estão todos surfando no capital político histórico do presidente, mas a cada patacoada dessas a situação se torna mais complicada e a eleição de 2026 mais difícil. O bolsonarismo – semimorto – agradece.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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