Sequestro dos heróis brasileiros e dos demais pacifistas da flotilha exige mobilização geral e reação mais forte do Brasil
A luta pela liberdade dos brasileiros sequestrados é a mesma luta pela vida do povo palestino e pela defesa de uma efetiva ordem internacional
Um ato de pirataria moderna foi consumado em águas internacionais. A interceptação pela Marinha israelense da Flotilha Global Sumud, que transportava ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, e o subsequente sequestro de centenas de ativistas pacíficos, incluindo cidadãos brasileiros, representam uma afronta direta à soberania do Brasil e aos princípios mais básicos do direito internacional. Entre os voluntários sequestrados por Israel está o brasileiro Miguel Viveiros de Castro, que, enquanto pôde, participou ativamente da programação da TV 247 a partir de um dos barcos da flotilha, levando ao público brasileiro informações diretas sobre a missão e a resistência pacífica que ela representava.
Os membros da flotilha, em meio a tantas alegações de fraqueza e até indisfarçadas traições, resolveram tomar em suas mãos as suas ações contra o genocídio sionista em Gaza. A luta muda de qualidade com seu sacrifício. O planeta se mira em sua luta. Como a Comuna de Paris e as brigadas internacionais da Guerra Civil Espanhola, eles resolveram, em nome da consciência internacional, assaltar o céu. Sofrem agora toda a carga de torturas do Estado supremacista.
Diante de situação de tal gravidade, a resposta do governo brasileiro, ainda que inicialmente correta em sua condenação, mostra-se insuficiente. É hora de uma reação mais enérgica e coerente, que vá além da diplomacia tradicional e mobilize todos os instrumentos de pressão disponíveis, acompanhada por um movimento massivo da sociedade civil. A Colômbia, por exemplo, diante do sequestro de seus cidadãos na flotilha, reagiu expulsando diplomatas israelenses.
A inédita e maciça mobilização de trabalhadores italianos, por outro lado, serve de exemplo e espelho para o que se espera do Brasil.
A operação de interceptação foi ilegal em sua essência. As embarcações foram abordadas a dezenas de quilômetros da costa palestina, em águas internacionais. Os voluntários, heróis que carregavam alimentos, água potável, medicamentos e brinquedos, foram tratados como combatentes. Relatos indicam que, após a captura, foram forçados a ajoelhar-se com as mãos amarradas por horas. O governo israelense, ao negar inicialmente o acesso consular e jurídico aos detidos, agravou ainda mais essa violação. Os sequestrados da flotilha foram confinados numa prisão no deserto do Negev, a 30 quilômetros da fronteira com o Egito. Esconder o paradeiro de pessoas e depois dificultar seu contato com o mundo exterior são táticas inaceitáveis.
Perante essa afronta, a posição diplomática do Brasil precisa evoluir de notas de repúdio para ações concretas e consequentes. A liderança brasileira em uma denúncia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, apoiada por dezenas de países, é um primeiro passo importante, porém tímido. É imperioso que o governo adote imediatamente todas as medidas necessárias para garantir a vida e a integridade física dos cidadãos sequestrados. Isso exige acionar de forma mais contundente todas as instâncias multilaterais e mobilizar os fóruns dos BRICS e da América Latina para isolar politicamente Israel.
A coerência é fundamental. Como pode o Brasil condenar o sequestro de seus cidadãos e, ao mesmo tempo, manter praticamente inalteradas relações comerciais, militares e acadêmicas com o governo que cometeu esse ato? Representantes da sociedade civil já demandaram o rompimento total de relações. Uma posição passiva, que coloca interesses comerciais acima de vidas humanas e da própria soberania nacional, precisa ser revista. A pressão para que o país adote uma política de Boicote, Desinvestimento e Sanções não é um radicalismo, mas uma ferramenta diplomática legítima e condizente com a gravidade dos fatos.
Que se use o altruísmo da flotilha como paradigma. A experiência internacional demonstra que a mudança real não virá apenas de salas de reunião onde prevalecem cálculos mesquinhos de custo-benefício, mas da força organizada da sociedade. O exemplo mais contundente e recente vem da Itália, onde uma greve geral nacional paralisou o país. A ação, convocada por importantes centrais sindicais, levou centenas de milhares de pessoas às ruas em Roma e milhões em mais de cem cidades italianas. Os sindicatos italianos declararam explicitamente que a greve era para se solidarizar com o povo de Gaza e protestar contra o bloqueio humanitário e a interceptação da Flotilha Global Sumud. A paralisação afetou setores cruciais: transportes ferroviários e urbanos, escolas e serviços públicos foram interrompidos, com os protestos bloqueando inclusive portos e rodovias. Esse não foi um protesto isolado, mas uma ação de força coordenada do movimento de trabalhadores, mostrando que a solidariedade internacionalista pode e deve ser exercida através da interrupção da economia que, indiretamente, sustenta a opressão. O movimento se espalha pelos continentes.
Este momento histórico coloca um refletor sobre o movimento popular brasileiro. Onde estão as frentes, as centrais sindicais brasileiras neste momento de ação internacionalista? Enquanto os trabalhadores italianos cruzaram os braços e paralisaram seu país em defesa da humanidade, as vozes de entidades brasileiras de mesmo porte parecem abafadas. Estudantes brasileiros saíram às ruas em protesto, realizando atos em frente ao Itamaraty, em Brasília e em outras cidades, condenando a interceptação da flotilha como um ato de sequestro e cobrando do governo uma atitude mais firme, incluindo o rompimento de relações com Israel. O movimento sindical brasileiro tem uma tradição histórica de lutas não apenas por melhores salários, mas por direitos humanos e justiça social. Este é um momento de resgatar essa tradição internacionalista. A ausência de paralisações simbólicas de grande escala, seguindo o exemplo italiano, é uma omissão que enfraquece a pressão global sobre Israel e deixa os cidadãos brasileiros sequestrados e o povo palestino com uma solidariedade menos efetiva.
É verdade que, de maneira atomizada, a mobilização ocorre no Brasil com vigílias e atos públicos, mas ela precisa ser amplificada pela força dos trabalhadores e setores sociais organizados. É hora de sindicatos, entidades estudantis, universidades, movimentos sociais e partidos políticos transformarem a indignação em ação coordenada e permanente.
A ruptura de convênios com universidades israelenses, adotada pela Universidade Federal Fluminense e pela Unicamp, constitui exemplo a ser seguido.
As ruas devem ecoar as exigências pela libertação imediata de todos os ativistas, pelo fim do bloqueio a Gaza e pelo afastamento em relação a Israel. A luta pela liberdade dos brasileiros sequestrados é a mesma luta pela vida do povo palestino e pela defesa de uma efetiva ordem internacional. A perspectiva de um ainda incerto e duvidoso “plano de paz” na região não altera o que está em jogo.
O Brasil não pode se calar. É tempo de os trabalhadores brasileiros, seguindo o exemplo de seus pares italianos, mostrarem que o internacionalismo não é uma palavra vazia, mas uma prática de classe. É tempo de reação, nas esferas oficiais e, principalmente, nas ruas.
